sexta-feira, nove e meia da noite. o salão começa a compor-se. é assim todas as semanas, na casa do concelho de tomar, em lisboa. encontramos mulheres e homens numa azáfama, a retirarem dos sacos o segundo par de sapatos – os do tango. é raro aquele que dança com o calçado que traz da rua. não dá jeito, nem é elegante. a aula é livre e aqui todos são bem vindos: mais novos, mais velhos, altos, baixos, brancos ou morenos, podem vir vestidos como der mais jeito, mas todos pretendem fazer boa figura. administradores de empresas, médicos, engenheiros, esteticistas, fisioterapeutas ou meros estudantes juntam-se para praticar ou para se iniciar numa dança que é para muitos um estado de alma.
às dez e meia da noite baixam-se as luzes. o cenário muda. é a abertura para mais uma noite de tango: a milonga. a palavra tem dois significados: é o local onde se vai dançar a modalidade, mas também é um estilo dentro da própria dança. uma dança picada, alegre e divertida (o último resíduo africano).
sentadas ou de pé, as senhoras aguardam, mais ou menos pacientes, pelo convite de um cavalheiro que as leve à pista de dança. o ritual começa pelo cabeceo: o homem olha a mulher nos olhos, ela por sua vez faz um sinal afirmativo com a cabeça. caso não queira aceitar, a mulher olha para o lado. esta tradição evita que haja o constrangimento de levar um não como resposta e que todos à volta se apercebam. ela também pode lançar um olhar fixo sobre o homem e está assim a emitir um sinal de que deseja ir com ele à pista. porém, a mulher nunca se pode levantar e chamar o homem para dançar. respeitadas as regras, o par dirige-se para a área estabelecida e o bailado começa.
o que é o tango? podemos dizer que é uma história de amor entre um homem e uma mulher que dura pelo menos três minutos, onde ambos se perdem na emoção profunda e misteriosa de um abraço.
diz-se que o tango é sensual, dramático, triste, agressivo e masculino. carlos matias, professor, produtor e dj, não concorda totalmente. afinal de contas, a mulher tem o poder de escolher o seu par e escolher a distância entre o casal. é verdade que ela é um elemento de adorno e é o homem que tem de a guiar para que ela brilhe. só na milonga o homem pode ser visto a dançar. “se o homem se destaca nos outros estilos de tango, então é porque está dançar mal”, explica carlos matias. outros estilos se encontram no tango argentino: o de salão (em espaço amplo), o de cenário (espectáculo com movimentos fortes) e o contemporâneo (com inclusão de sons electrónicos). alguns entraram em desuso, como é o caso do orillero e do canyengue, que se dançavam nos anos 30 – mas ao que parece este último está agora de regresso.
o par vai sem destino certo, mas não pode sair da pista, a não ser no fim de cada tanda, uma sequência de músicas dentro do mesmo estilo. normalmente são quatro. se a mulher se retirar antes de a tanda acabar, isso é… falta de educação. os outros dançarinos podem pensar que houve desrespeito por parte do homem, ou que ele é um péssimo dançarino. se a senhora não gostou, já sabe como evitar o próximo convite apenas com o desvio do olhar. alguns casais só dançam juntos uma tanda porque apenas se entendem naquele estilo. nas seguintes, trocam de par.
o tango é dançado normalmente em linha, numa posição cerrada, peito com peito, ou face encostada. permite uma improvisação infinita, uma das características que diferenciam esta dança das demais. há passos básicos, claro. o gancho, o ocho, a colgada ou a volcada. mas nesta dança tudo pode acontecer. com o desenrolar da música, surgem os passos ao sabor das sensações. por essa razão, alberto castillo, cantor argentino, dizia na sua música ‘así se baila el tango’ que o tangueiro é como um pintor, desenha os oitos no chão e outros passos que tais…
manuela barbosa, ilídio varandas, alexandra rua e lino silva, aficionados desta dança, em vez de esperarem que o público fosse ao tango, levaram o tango até ao público. assim, criaram o tango na rua. a dança andou no último verão por vários espaços públicos de lisboa. os organizadores explicam: “não somos uma escola de tango: procuramos dinamizar e divulgar o tango proporcionando lugares com personalidade. os encontros são gratuitos e de entrada livre”. algumas pessoas entusiasmam-se e acabam por ir aprender tango numa das várias escolas da capital.
“ao contrário da salsa, por exemplo, onde se dança mais ou menos no mesmo sítio, no tango dança-se ao redor da pista e no sentido contrário aos ponteiros do relógio. desejavelmente não se pára bruscamente a meio da pista, não se ultrapassa o par da frente sob pena de se estragar a ‘ronda’. é aconselhável saber estas coisas para não andar aos encontrões e destabilizar a milonga”, explicam os organizadores do tango na rua.
uma milonga na praia
homem experiente na matéria é carlos matias, professor da escola de tango e-motion, em lisboa. além disso é um dj internacional, convidado desde há cinco anos no festival de sitges, o mais badalado da europa, onde faz a milonga da praia. nas suas aulas gosta de citar grandes professores internacionais: “sebastian arce queria muito ensinar a mulher que foi o seu primeiro par. de tal forma, que só a baralhava. e ela começou a dizer-lhe: ‘cala-te e dança, cala-te e dança’“. e foi assim que evoluíram, sem grandes teorias e muita prática.
foi também o que fizeram fernando jorge e alexandra baldaque, que em 2011 se tornaram campeões europeus nesta modalidade. ele engenheiro, ela professora universitária, andam nestas lides há 16 anos e juntos dançam tango há 11, sempre de improviso. de entre 62 pares de 13 países, foram eles os escolhidos.
regresso às origens
este ano, no 11.º campeonato mundial de tango, houve espaço para a participação de casais do mesmo sexo, que até aqui faziam campeonatos à parte, em certames gay. “desde 2003 que reapareceu la marshall, uma milonga com pessoas do mesmo sexo e daí ao concurso é uma evolução natural”, diz carlos matias. se a argentina foi dos primeiros países a legalizar o casamento homossexual, por que não continuar na vanguarda?
a inovação surpreendeu o público, mas a verdade é que esta dança começou precisamente com pares do mesmo sexo. durante o século xix, a argentina tinha falta de mão-de-obra e viu-se obrigada a incentivar estrangeiros para trabalhar. tal como ainda hoje acontece, os homens iam primeiro, deixando as suas famílias no país de origem. e porque a população se tornou maioritariamente masculina, surgiram mais de 200 casas de prostituição. a procura era tanta que, para entreter os clientes enquanto esperavam a sua vez, essas casas tinham encenações de números musicais. para esses eventos, apareciam grupos de emigrantes de diferentes culturas, cada um com as suas tradições, desde a polka ao candombé (dança uruguaia de origem africana), da habanera à milonga espanhola. em 2009, a unesco declarou esta fusão de culturas património cultural imaterial da humanidade.
no início do século xx, o tango desembarca na europa, levado pelos marinheiros franceses e o seu sucesso em paris é imediato, o que se reflecte no resto do mundo. deixa de ser uma dança ‘maldita’ (indecente, obscena, grosseira) e a alta sociedade adopta-a subitamente.
antes, só as prostitutas dançavam e, como estavam em minoria, era normal os homens dançarem uns com os outros nos bordéis, nas ruas e nos bares de buenos aires. as caras viradas para o lado, sem olhares entre o par, são resultado disso. hoje em dia, um dos pares masculinos de maior sucesso dá pelo nome de los hermanos macana. enrique e guillermo de fazio são irmãos, nascidos e criados em buenos aires, que estudaram esta dança e se tornaram também coreógrafos. o seu estilo é humorístico, masculino mas bem rendilhado. destacam-se como uma dupla muito original, com forte presença e muito carisma.
nestes casos, ninguém faz especificamente de homem ou de mulher. há uma das pessoas que conduz (a que tem o braço esquerdo levantado) e outra que é conduzida. é normal ver-se os irmãos a trocarem essa posição.
ao longo dos tempos foram surgindo variantes: nos estados unidos e inglaterra, por exemplo, as cabeças não se tocam e há menor flexibilidade; o tango finlandês tem um ritmo mais lento e melancólico e as mulheres usam saias compridas e com roda. no tango oriental não existe o par, mas sim uma mulher que dança sozinha em palco perante uma plateia.
também em portugal surgiu um novo estilo: o tango-fado. a sua história é contada em tangoportugal.com. “em finais de 1999 na antiga milonga dos vendedores de jornais futebol clube, no bairro da madragoa, alejandro e solange incitaram as pessoas a dançar fado com tango. várias destas milongas contaram com a participação ao vivo de fadistas, como por exemplo ricardo ribeiro”. no início do ano 2000 o casal acabou por introduzir a tanda de fados nas suas milongas como algo obrigatório, o que acontece até hoje.
amor à primeira vista
aos milongueiros também se dá o nome de tangueiros. é assim que se intitulam aqui em portugal. francisco miguel sousa é um deles. tem 29 anos e já anda nestas lides há quatro. “comecei em 2009, quando estava a trabalhar em montevideo, uruguai. todos os dias passava pela avenida principal e estavam sempre lá idosos a dançar à tarde. uma vez tive curiosidade e parei. comecei a dançar com eles e foi amor à primeira vista. a partir daquele dia a alegria dos idosos na dança (ao contrário de portugal, onde passam o tempo nos jogos de cartas e afins), era imensa e já fazia parte de mim”. além do uruguai, francisco já dançou na argentina, quénia, qatar, espanha, inglaterra e moçambique.
e acrescenta que o tango, para ele “acaba por ser uma terapia”. vai sempre sozinho. de início sentia-se pouco à vontade em pedir a uma senhora para dançar, mas agora que já sabe bem as regras, é algo que faz com naturalidade.
antes de chegar a qualquer lugar, já sabe por onde andam as milongas. “ao aterrar num país já sei o dia e a hora”.
de facto, não é difícil. existem livros, publicações e estações de rádio dedicadas ao tema. na internet também está lá tudo. no site milongas-in.com, podemos consultar a agenda de milongas em qualquer parte do mundo.
maria da conceição gosta de ver dançar. quando ouve algumas das tandas, comenta prontamente: “isto, sim, é tango verdadeiro”. o que para ela é sinónimo de tango argentino dos primeiros anos do século xx.
desde os primórdios, o tango tem tido transformações na sua musicalidade. a primeira chegou nos anos 20 e teve no cantor carlos gardel o grande impulsionador: viu ser introduzida a voz e as letras indecorosas passaram a temas românticos. a segunda mudança desenrola-se após a ii guerra mundial. os eua saem vitoriosos e o tango sofre, por isso, influências do jazz, algo muito visível nos temas de astor piazzolla. o número e variedade de instrumentos musicais aumentou e as melodias ficaram cada vez mais profissionais. mais recentemente, uma terceira etapa trouxe novas mutações ao tango, com a introdução dos sons electrónicos. um dos casos de maior sucesso tem sido protagonizado pelos gotan project. dado possuírem uma sonoridade mais actual, são muito apreciados pelos jovens. e a ‘dança do abraço’ é para todas as idades.
