o texto escrito pelo nobel irlandês samuel beckett no início da década de 1960 decorre num ambiente pós-apocalíptico, em que winnie (interpretada por emília silvestre) se apega à vida apesar de estar enterrada até à cintura sob um sol inclemente. nunca se fica a saber o quê ou quem a levou a esse estado.
“ela está presa na sua circunstância, é uma espécie de vénus de milo em vida. é uma lutadora, uma mulher que age apesar das circunstâncias, que se ocupa através das palavras, e essa metáfora é muito forte. há factores de sobrevivência, resistência e perplexidade, perante uma realidade imposta de fora para dentro, que podem ser lidos à luz dos nossos dias”, declarou nuno carinhas, em conversa com o sol.
winnie está impossibilitada de quase tudo, menos falar e pensar. evoca memórias e momentos passados com o marido willie, põe em prática rotinas, tagarela sem parar. onde estarão os dias felizes?
uma actriz perto da loucura
o texto de beckett não oferece respostas fáceis: “não há aqui nada para fechar, antes pelo contrário. na ironia que é típica do beckett, as perguntas têm sempre vários sentidos. ele já ganhou um sentido de eternidade e é pertinente em qualquer circunstância”. carinhas seguiu as directrizes do autor para um cenário despojado, em que o monte que enterra winnie é construído com cortiça.
ah, os dias felizes tem duas personagens em cena, mas é quase um monólogo. “são 30 páginas de texto da mulher e meia dúzia de linhas para o actor, se bem que ela está sempre em diálogo, mesmo que ele não ouça”, precisa emília silvestre, que encontrou aqui o “papel mais difícil” da carreira, que começou em 1973, quando a portuense tinha apenas 13 anos.
“não é só a quantidade de texto, mas também construir uma mulher numa situação extrema, que continua a acreditar no amor. beckett criou um objecto cénico em que os ritmos e as palavras têm um tempo preciso. está tudo certo e se fugirmos ao que está determinado nada faz sentido”, explica a actriz.
a maneira como emília silvestre domina o texto é ainda mais impressionante se atentarmos ao facto de o trabalho de preparação apenas ter sido iniciado a 9 de setembro. “acordo de noite a dizer o texto. praticamente não tenho vida própria desde que comecei os ensaios”, revela a actriz, que se sentiu perto da “loucura total” quando teve de juntar a voz a uma série de acções com objectos que decorrem no primeiro acto. “foi uma experiência brutal, mas é uma peça comovente que espero que o público usufrua. digo sempre é o último monólogo que faço, mas quando chegar ao final já não sei…”.
beckett em dose dupla
depois da estreia, ah, os dias felizes vai estar em cena no porto de 15 a 29 de novembro, seguindo-se almada e braga. já em janeiro de 2014, o tnsj vai regressar a beckett com à espera de godot, pelo ensemble.