A complexidade de um Imperador

Multiplex é uma história de amor: amor por um livro e por um imperador. O novo espectáculo de Rui Horta nasce de Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, obra que acompanha o coreógrafo há muitos anos.

uma espécie de livro de cabeceira, onde se encontra sempre a palavra certa, um porto de abrigo: “este livro acompanha-me há muitos anos e sempre achei que ia fazer qualquer coisa com ele. ao mesmo tempo tinha vontade de fazer um trabalho sobre a construção civilizacional, sobre como somos tão luminosos, mas também capazes de destruir tudo. o imperador adriano e as suas memórias foram um veículo perfeito para trabalhar sobre este tema”.

esta não é a primeira vez que rui horta trabalha inspirado num livro (fê-lo nas lágrimas de saladino, de amin maalouf), mas foi a primeira vez que a relação entre livro e espectáculo se revelou tão íntima.

multiplex não segue uma linha narrativa. é antes um shuffle de temas – amor, violência, legado, construção, inveja, obsessão pela morte – que ilustram a complexidade humana, a capacidade do homem de luz e de trevas. esse homem, aqui, é adriano, um imperador pacificador, cujo universo íntimo somos convidados a conhecer.

num palco onde não há nada, mas ao mesmo tempo há tudo, a mensagem é de uma actualidade inquestionável. adriano fala da necessidade de pobres e ricos encontrarem um equilíbrio ou sobre como a servidão do espírito é mais insidiosa do que a escravidão física. essa não foi, no entanto, a intenção de rui horta: “não faço analogias nem manifestos com esta peça, mas de facto há aqui uma grande actualidade. a roma de antes seria a alemanha de hoje”.

as fronteiras entre teatro e dança esbatem-se, muito fruto também da escolha – em nada inocente – do actor pedro gil e da bailarina silvia bertoncelli. gil é um actor muito físico, silvia uma bailarina muito teatral. ele o texto, ela o contexto. ele o imperador adriano, ela uma espécie de “eco, de decor acústico que, por falar em italiano, transporta-nos para roma”.

rui horta está, neste multiplex, mais longe da dança – no seu sentido convencional – do que nunca. é o texto o ponto de partida e as palavras parecem ter um papel mais predominante do que o próprio movimento. excepção feita para quando se fala de amor. aí é a dança que prevalece, no escuro, sem chão. porque os homens racionais também se apaixonam e até os imperadores se tornam mortais quando o assunto é amor. “a primeira grande perda de adriano é quando se apaixona, acho que isso nos acontece a todos: quando nos apaixonamos perdemos o chão”. multiplex subiu ontem ao palco do ccb e repete hoje.

raquel.carrilho@sol.pt