A aventura de cultivar os alimentos

Tinha de acontecer. Depois de décadas de asfalto e cimento, era inevitável “regressar à terra, tocar nas nossas raízes, por uma questão de equilíbrio”. As palavras são de Marc Estévez Casabosh, autor do bem sucedido Uma Horta para Ser Feliz (Arteplural), que em Espanha soma já oito edições e tem agora a versão portuguesa.

“o cultivo ecológico de alimentos está a espalhar-se como… um pé de hortelã”, avisa. é um sinal dos tempos de viragem. um pouco por toda a europa, estados unidos e canadá, organizam-se hortas comunitárias, recuperam-se quintais nas traseiras dos prédios, projectam-se edifícios com telhados verdes, reinventam-se hortas verticais e floreiras para cultivo em pequenos espaços.

“não é uma moda, é algo que fazemos há mais de nove mil anos. só estamos a recuperar o que o capitalismo feroz das últimas décadas nos tirou”. desaprendemos as tarefas mais básicas, como fazer pão ou plantar um pé de alface, “por comodismo”, porque crescemos com a ideia de que isso é complicado ou um trabalho duro e que alguém o fará por nós.

antídoto para o stresse

fazer uma horta, por pequena que seja, representa muito mais do que cultivar alimentos. “quando tocamos na terra descarregamos tensões e o stresse acumulado. é um momento de descompressão e descontracção”. ao lado prático, soma-se o lado emocional: “ensina-nos a ser pacientes, a trabalhar com serenidade e constância, a comtemplar as coisas mais simples e a desfrutar delas”.

os argumentos da falta de tempo e de espaço podem cair por terra quando ler as páginas do livro. quinze minutos por dia bastam para cuidar de um “jardim comestível” com 60 metros quadrados, seguindo métodos de produção biológica propostos pelo autor. mas se falarmos de uma floreira à janela ou de vasos na varanda, pode nem ser preciso um cuidado diário. para espaços pequenos, a regra é cultivar alimentos pequenos, como tomates rasteiros, espinafres ou morangos. para espaços interiores e sem luz direta, a opção recai sobre as ervas aromáticas, como o tomilho ou o manjericão.

o segredo

marc estévez nasceu e cresceu na cidade de barcelona, mas aos 15 anos já percorria bosques e florestas à procura de cogumelos e de plantas medicinais. saía durante semanas para localizar, mapear e recolher algo que o avô lhe ensinou a estimar, desde criança. “aos dois anos ele já me levava pela mão e explicava para que serviam. temos autênticos tesouros nas florestas”.

chegou a ficar quase um mês isolado nos pirenéus, a dormir no interior da floresta. uma loucura da juventude vivida ao máximo, aos olhos de hoje. andou pelos bosques de espanha, portugal, roménia, rússia e de áfrica, identificando espécies e estabelecendo contactos com as populações locais para a comercialização dos tão cobiçados rovellons, cogumelos muito apreciados em barcelona.

“descobri povos incríveis, mesmo na europa, que eu pensava que já não existiam”. povos sem qualquer contacto com o mundo moderno, com uma sabedoria ancestral, transmitida de geração em geração. das viagens e pesquisas que fez, resultaram dez livros publicados em catalão e castelhano sobre segredos e rotas de cogumelos. um tema que é actualizado semanalmente na imprensa espanhola, em função do ciclo das chuvas, mas que por cá ainda é pouco explorado.

aos 22 anos já marc estévez se tinha instalado na casa que construiu, com as próprias mãos, nos pirenéus da catalunha. a mudança para o campo e a vontade de ter sempre disponíveis alimentos biológicos levaram-no a criar uma horta para autoconsumo. tinha estudado nutrição e dominava o universo das plantas selvagens, mas até ter a horta “não era apreciador de verdura no prato”, reconhece. a transformação, aliada à paixão da escrita e divulgação, deu origem ao livro uma horta para ser feliz.

quilómetro zero

para quê comprar alimentos que viajaram dois mil quilómetros para chegar até nós, se podemos colhê-los na varanda de casa? já não se trata de comprar um produto nacional, da época ou produzido localmente. ter uma horta biológica representa impacto zero: não houve transporte, armazenamento, pesticidas, colheita prematura ou qualquer tratamento de conservação. o alimento foi directo da terra para o prato.

“o que se está a passar é uma revolução silenciosa. chamam-lhe até agricultura de guerrilha”. as pessoas procuram viver melhor e contribuir para um mundo mais sustentável. querem ter confiança naquilo que comem, ter alimentos frescos e com qualidade, ao mais baixo custo e tirando o máximo de proveito. “fala-se muito do valor vitamínico dos alimentos, mas não se alerta para os tratamentos a que estes estão sujeitos e para a perda nutricional que ocorre após a colheita”, comenta o autor. ao fim de uma semana, por exemplo, uma cenoura pode ter perdido quase todas as vitaminas.

se alguém lhe disser que colheu “os melhores tomates do mundo” na sua varanda, talvez não esteja a exagerar. são alimentos saídos das suas mãos e que pode saborear com todo o prazer. “sacuda a preguiça e… semeie esta ideia!”, aconselha marc estévez.

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