A boémia que despertou a baixa do Porto

O centro do Porto era um deserto durante a noite, mas, de há oito anos para cá, a movida instalou-se de armas e bagagens. O número de bares multiplicou-se e agora confluem aqui todas as tribos, se bem que o rock seja a banda sonora deste ‘filme’. Do pré-histórico Pipa Velha ao jovem We Love…

o pipa velha é uma espécie de avô dos bares da baixa do porto: abriu em 1981, com o carimbo de ‘petisqueira para gente fina’, numa época em que a palavra bar que se lia à entrada lhe granjeava uma reputação tão negativa que acabou por ser retirada. “havia pubs, discotecas e casas de alterne. fomos os primeiros a assumir a palavra bar”, recorda eurico rocha, filho do proprietário original e actual gerente. a placa à entrada do ‘pipa’ foi recentemente renovada e exibe agora, orgulhosamente, a data de fundação. porém, esta não foi a única coisa a alterar-se: desde 2005 que, nos quarteirões circundantes, se multiplicaram os bares, restaurantes, discotecas e cafés abertos à noite, especialmente ao fim-de-semana.

o epicentro de todo este movimento é a rua da galeria de paris, que cunhou a expressão ‘ir às galerias’: dizer isto significa agora ir tomar um copo (ou vários) à baixa do porto, em volta da zona dos clérigos (e não ‘lá para baixo’, para a ribeira, como era hábito nos anos 90). há oito anos, a rua da galeria de paris ficava deserta à noite e manuel mendes, actual gerente d’o portinho – um snack-bar que se adaptou aos novos tempos e que agora factura bastante como posto de abastecimento low-cost de bebidas –, acompanhou essa mudança.

“o perfil da rua mudou, porque antigamente servíamos 120 ou 130 almoços, agora fazemos 30 ou 40 e já é muito. isto dantes até metia medo de noite, mas agora é o que se vê”, conta ao sol. e o que se vê é uma imensidão de gente que torna praticamente proibido o trânsito de automóveis na rua: há portugueses e estrangeiros – manuel mendes garante que às vezes “a gente de fora” é mais de metade da sua clientela –, jovens e pessoas de meia-idade, gente com os trocos contados e outros que não olham aos preços. quase em frente d’o portinho está a casa do livro, uma antiga livraria convertida em bar/discoteca, que inaugurou a vertente boémia da artéria, em junho de 2007. no início, o seu público privilegiado seria uma classe média-alta cosmopolita, mas a nova noite da baixa é democrática e o porto não é uma cidade de tribos. nas ruas, acima de tudo, vê-se gente comum.

a decadência da ribeira

para explicarmos como nasceram as ‘galerias’, temos de recuar mais atrás, até meados dos anos 90, quando a ribeira era o espaço nocturno por excelência no porto. um cocktail que juntou insegurança, obras e queixas dos vizinhos que fizeram a zona ribeirinha definhar. pedro puré, de 43 anos, é gerente da emblemática tendinha dos clérigos, onde terminam invariavelmente as noites na baixa, mas acompanhou o processo de esvaziamento da ribeira enquanto trabalhava nos emblemáticos o meu mercedes é maior que o teu e real feytoria: “lembro-me que se instalou na zona da praça do cubo uma esquadra de polícia, cuja única ordem parecia ser autuar os estabelecimentos. havia vandalismo e assaltos e isso não foi resolvido. parece ter havido um movimento para transportar as pessoas para a zona industrial”. as mega-discotecas nessa área mais periférica marcariam o panorama nocturno por vários anos, mas os crimes de 2007 – que originaram o processo ‘noite branca’ – ditaram definitivamente o fim de um ciclo.

então, já uma nova etapa se havia iniciado. é improvável que os futuros historiadores deste movimento não considerem como marco inicial a inauguração do café lusitano, na rua de josé falcão, em fevereiro de 2005. “quando abrimos, vários fornecedores questionaram a nossa opção e alertaram-nos para o perigo de estarmos num local onde não havia nada”, lembra mário carvalho, um dos proprietários, que esteve longos anos à frente da discoteca indústria. nessa época, já ele e o sócio joão madureira diziam que a baixa era o futuro. pouco tempo mais tarde, casas cheias e gente à porta vieram dar-lhe razão. o lusitano atraiu ainda um público que se tem revelado fiel: o rótulo gay-friendly foi desde sempre assumido, mas em convivência sã com outras orientações sexuais.

os ingredientes para o cocktail de sucesso da baixa estavam reunidos: património histórico, poucos habitantes, parques de estacionamento disponíveis e espaços amplos com rendas baixas. lojas, armazéns e prédios devolutos foram sendo ocupados. em março de 2006, o café piolho renovou-se e assumiu-se como ponto de encontro informal de todo o género de noctívagos, sem excepção: as enchentes à porta deste café de tradição académica (cujas paredes estão pejadas de placas comemorativas de cursos) ocupam por vezes toda a praça de parada leitão. é aqui que começa o botellón, o fenómeno de consumo de álcool nas ruas que preocupa as autoridades e os donos dos bares, que pagam licenças mas sofrem a concorrência “desleal” de vendedores de rua.

nos últimos meses, continuaram a abrir casas que procuram ultrapassar o conceito de bar, como o we love porto: com uma forte aposta nas redes sociais (há sempre uma fotógrafa presente para que depois as caras dos clientes sejam partilhadas no facebook), aponta a uma faixa etária dos 20 aos 30 anos e congrega estudantes universitários, jovens trabalhadores e estrangeiros. “os clientes dizem-nos que se sentem como se convidassem amigos para a sua casa”, conta joão rocha, que tem como parceiro o dj joão pereira. estes são dois exemplos do empreendedorismo que foi responsável pelo crescimento nocturno da baixa, um fenómeno que teve a iniciativa privada como motor. as queixas, por sua vez, dirigem-se aos morosos processos de licenciamento na câmara municipal do porto (cmp).

o rock na casa de partida

descemos duas ruas e mudámos de música: se no we love porto se ouvem os sucessos da rádio e música brasileira, no tendinha dos clérigos domina o rock, que pode ir dos rolling stones e led zeppelin até aos mais actuais arctic monkeys e arcade fire. abriu em abril de 2005, na sombria rua do conde de vizela, primeiro como “tasca rock”, mais tarde de cara lavada mas sem deixar de ser uma pista de dança para suar ao som das guitarras. o proprietário alberto fonseca luta actualmente para manter as portas abertas até às 6 horas, isto porque a cmp quer limitar o funcionamento dos espaços nocturnos até às 4. porém, é precisamente a essa hora que a tendinha começa a ‘carburar’. “obrigar todos a fechar às quatro da manhã é absurdo e autista, é pôr cumpridores e incumpridores no mesmo plano. contribuímos para tirar as pessoas da rua e não para aumentar o barulho”, defende pedro puré.

muitos outros espaços na baixa nasceram tendo como prato forte o rock. em meados dos anos 2000, existiam poucos bares e discotecas a apostar neste género, mas o sucesso do tendinha provou que, afinal, havia público para ele. andré reed, de 38 anos, é um dj que já apostava no rock antes deste surto e que ficou surpreendido com o “dinamismo” dos bares que foram surgindo, pelo arrojo na decoração e programação (aliás, é por isso que há quem diga que as ‘galerias’ são uma espécie de bairro alto sofisticado). “a baixa deve grande parte do crescimento ao rock, especialmente na vertente indie, mas agora, pode ouvir-se todo o tipo de música. aqui vê-se mais gente comum, mas todos têm o seu espaço, desde os góticos aos metaleiros”, observa.

também podemos falar dos hipsters ou, se não quisermos usar a palavra, do público mais alternativo e avant-garde da baixa. esses têm como um dos poisos principais o plano b, um bar e espaço de criação cultural que ocupa o piso térreo e a cave de um antigo armazém de tecidos na rua de cândido dos reis. a programação abrange concertos e nomes das franjas mais progressivas do house, electro e drum & bass, mas também a popular festa da gigi, em que coexistem sucessos da música indie e hinos mais ou menos ‘pimba’ de cantores como marco paulo. “começámos por ser quatro sócios e todos tinham uma ligação com artes plásticas, pintura ou arquitectura, como é o meu caso”, conta filipe teixeira, que tem como parceiro o irmão-gémeo joão. depois de um ano à procura de um tecto, começaram por realizar festas privadas, em fevereiro de 2006. o burburinho que geraram ‘obrigou-os’ a abrir de forma oficial e foi assim que o plano b se tornou outro pilar na baixa: do “caos organizado”, passou a sítio de referência.

a baixa do porto é menos agreste do que a ribeira e menos fria do que a zona industrial, mas não é um mundo perfeito. “ando aqui muitas noites sem ver um polícia e julgo que essa foi a grande falha e a queda da ribeira”, alerta o dj andré reed. o crescimento tido como ‘desproporcionado’ do número de bares preocupa alguns comerciantes, mas terminemos a nossa viagem no local de conforto onde a iniciámos, o pipa velha. por entre rústicas paredes em pedra, os clientes habituais reúnem-se em torno de mesas de madeira maciça com a companhia de petiscos e canecas de cerveja. se tudo à volta continuar a mudar, para o bem ou para o mal, parece certo que se manterá aqui um reduto emblemático e uma forma familiar de viver a noite portuense.

online@sol.pt