O que revela Machete

Os mistérios sucedem-se desde a nomeação de Rui Machete para ministro dos Negócios Estrangeiros, sucedendo ao ex-demissionário «irrevogável» do cargo, Paulo Portas.

desde logo, só por inexplicável leviandade o primeiro-ministro deixou passar em branco a carreira de machete depois da sua anterior experiência governativa nos anos 80, nomeadamente a polémica liderança da flad e, sobretudo, as íntimas ligações ao grupo bpn.

apesar da pequenez do país, um ministro dos negócios estrangeiros é sempre um ministro dos negócios estrangeiros, alguém que se pretende acima de toda a suspeita e com um currículo que o recomende para o cargo. ora, nenhum desses critérios foi aqui contemplado.

além disso, machete era um estrangeiro à actual coligação (onde fora natural a escolha de portas para as necessidades, antes da sua demissão e posterior promoção a número dois do governo). pelo contrário, tratava-se de alguém cujo rasto político se perdera na bruma dos sucessivos postos que foi ocupando nas redes clientelares do estado, do poder financeiro e da advocacia de negócios.

em resumo, nada justificava o seu regresso político e a promoção a um lugar de tal envergadura simbólica, a não ser, eventualmente, uma idade respeitável num governo de composição mais juvenil e as suas cumplicidades subterrâneas com passos coelho. só que a respeitabilidade não era exactamente a marca característica de uma personagem envolvida nas malhas sombrias do clientelismo. um cidadão comum poderia desconhecê-las ou tê-las esquecido, mas não um primeiro-ministro.

perseguido por esta sombra – à qual atribuía o gosto da imprensa pela ‘podridão política’ –, machete destacou-se rapidamente pela sua desastrada intervenção na rádio nacional de angola, onde pediu desculpa pelas investigações a que algumas personalidades angolanas estariam a ser sujeitas pela justiça portuguesa. um dos resultados indirectos desta manifestação de subserviência política foi o discurso de josé eduardo dos santos que pôs em causa a ‘parceria estratégica’ com portugal.

apesar das suas explicações disparatadas, machete acabaria, porém, por manter a confiança do primeiro-ministro, vendo desvalorizada uma frase «menos feliz».

a cena volta agora a repetir-se, mas num plano ainda mais bizarro, em que o ministro dos estrangeiros, falando num país de geografia exótica, a índia, decide interferir em território governamental que lhe é alheio – as finanças – e, em ostensiva divergência com o discurso oficial, lançar a dúvida sobre a possibilidade de portugal escapar a um segundo resgate financeiro. machete foi, aliás, bem preciso: seria necessário as taxas de juro da dívida a dez anos descerem para 4,5 por cento para dissipar essa ameaça.

machete acabaria por pretender justificar o injustificável, considerando os tais 4,5 por cento um número «meramente indicativo», como se a precisão desse número fosse despicienda, e a indiscrição, fatal para um chefe da diplomacia, não tivesse qualquer significado político.

não por acaso, foi o seu antecessor, paulo portas, quem, no governo, tomou primeiro a iniciativa de rebater machete, embora sem citá-lo directamente: o que está em causa na finalização do contrato com a troika é «uma data» (junho de 2014), «não uma taxa». e a própria comissão europeia correu a deitar água na fervura, referindo que «não há um número específico» para entrar na zona de perigo do resgate.

entretanto, cuidando de renovar a sua confiança em machete, passos coelho acabaria por concluir que «não há números mágicos». mas se não os há, então porque é que machete arriscou um número tão preciso? será porque se falou disso no interior do governo e o ministro dos estrangeiros, para puxar pelos seus galões que ele considerará algo menosprezados, quis exibir a sua intimidade com o segredo? não se sabe. sabe-se apenas que, apesar das declarações em contrário, o governo e a maioria vivem obcecados com os números que nos irão condenar ao inferno de um novo resgate ou permitir-nos aceder ao limbo de um programa cautelar.

é o cds – sobretudo através de paulo portas e pires de lima, revelando inesperadamente uma vocação de santo milagreiro – quem hoje lidera o eufórico optimismo governamental em detrimento de um psd mais tolhido e na defensiva.

está à vista o resultado da nova relação de forças na maioria depois da remodelação governamental, em que resta ao actual ministro dos estrangeiros o papel de trouble fête para chamar as atenções.

o que revela machete é também que o maestro passos coelho perdeu a pauta e a batuta e o governo navega ao sabor dos números – reais, indicativos ou imaginários, já ninguém sabe.