Um grande industrial

Conheci Jorge de Mello em Maio de 1968 e em circunstâncias complicadas para nós dois. Naqueles meses finais do Governo de Salazar, constara que a CUF, através de uma das suas subsidiárias, oferecera emprego a um conhecido oposicionista desterrado em S. Tomé.

esse gesto do maior grupo empresarial português foi interpretado como uma jogada oportunista do ‘capital’, preparando o futuro para vindouros horizontes democráticos. alguém me contou a história, explorando a minha justa e patriótica indignação, e eu arranjei modo de driblar a censura e publicá-la.

foi assim que um miúdo de 22 anos, estudante de direito, foi conhecer e ouvir durante três horas as explicações do chefe do maior grupo económico do país. fiquei, então, esclarecido quanto às causas e ao animus do gesto, mas, como se confirmaram os factos, recusei o desmentido solicitado e, quando ele foi publicado à minha revelia, deixei o jornal.

este foi o nosso primeiro encontro, ali na cobertura do edifício da 24 de julho, a chegar à infante santo, tejo ao largo e à vista.

um par de anos depois, um amigo comum, alberto franco nogueira, aproximou-nos. eram os princípios da política, um dos primeiros jornais de direita nacionalista independentes e críticos do poder. jorge de mello foi, com o prof. lumbralles, francisco casal-ribeiro e jorge jardim (então no grupo champalimaud), uma das pessoas que nos ajudou a aguentar a revista.

foi assim que o conheci, nesses anos finais do regime. além de partilhar, com o irmão josé manuel, a liderança do maior grupo económico português, jorge de mello era uma figura marcante na sociedade. tinha um enorme sentido de humor, era um grande conversador e contador de histórias, mas não era cínico, nem maledicente e muito menos arrogante.

quando veio a doméstica revolução socialista ele, a família e o grupo foram um alvo privilegiado da histeria revolucionária (todos se lembrarão do dr. cunhal e da sua referência aos ‘mellos a espreitar!’). e lá passaram pelas ‘prisões de abril’ com ânimo alto.

reencontrei-o nos tempos do exílio em madrid, em londres, no brasil, na suíça. guardava o sentido de humor e mantinha-se informado. um dia perguntei-lhe quem era um daqueles novos ‘vultos’ das finanças públicas democráticas que eu não conhecia.

«sabe, jaime, se o dom miguel agora voltasse a portugal e restaurasse a monarquia absoluta, haveria uns amigos ou conhecidos que diriam que ele (o tal novo vulto democrático-financeiro) era o homem para o banco de portugal».

tinha esta consciência lúcida do país, dos políticos, da sociedade e do seu meio. com um ar tranquilo, sem nunca elevar a voz, fazia-se respeitar e obedecer. pertencia a uma espécie em extinção: a dos ‘patrões’ que tinham mundo, que tinham convicções políticas e sociais, que percebiam que valor e preço não são a mesma coisa e que, geralmente, o que vale não tem preço ou está acima do que um português, mesmo sendo muito rico, pode pagar…

voltou. reconstituiu, com os filhos, parte do que herdara, do que construíra e perdera. nunca lhe vi nenhum ressentimento, nem amargura, nem despeito. observava os novos tempos com lucidez e foi ajudando as opções que achava melhores. ou menos más, pois não tinha nenhuma espécie de ilusões sobre o que o país perdera em termos de poder nacional.

jorge de mello teve sempre a consciência de que uma sociedade para se manter viva tem de ter a plasticidade da cooptação inteligente e responsável das suas elites, combinando conservação e mudança. discretamente, fez isso em todos os lugares onde teve influência e poder. e foram muitos.

era um bom amigo. no tempo em que todos passamos a ser da mesma geração, tive muitas horas de conversa livre com ele, até a doença o levar para uma penumbra onde já não era possível essa comunicação. jorge de mello morreu no domingo passado, 10 de novembro, mas há muito que sinto a sua perda.