Juros ilegais nos penhores a ouro

Há cada vez mais casas de penhores a fazer empréstimos sobre ouro com juros cobrados muito acima do permitido por lei. As taxas a pagar sobre estes empréstimos ultrapassam os 36% por ano, quando na prática este valor não pode ir além dos 4% ao ano, diz a Direcção-Geral das Actividades Económicas (DGAE).

numa altura de grave crise económica, a necessidade de dinheiro continua a levar muitos portugueses a empenhar jóias e objectos de ouro para enfrentar situações urgentes. e o número de estabelecimentos deste tipo a abrir portas disparou no país, a par do negócio das casas de compra e venda de ouro.

segundo dados do instituto nacional da casa da moeda, que emite as licenças, nos últimos cinco anos, o número de casas de penhores registadas subiu 76%: em 2009, havia 89 locais com licenças atribuídas e este ano são já 158.

mas haverá muitas outras a funcionar sem terem os documentos necessários, apurou o sol.

para quem penhora uma jóia, o processo é simples e rápido. o contrato de penhor é assinado na hora, permitindo obter um empréstimo imediato. o problema é que o mesmo objecto é avaliado, de loja para loja, por valores totalmente diferentes, obtendo por isso empréstimos muito desiguais. além disso, os juros cobrados atingem percentagens astronómicas, muito superiores, por exemplo, aos dos simples cartões de crédito.

nas várias lojas de penhores contactadas pelo sol, um pouco por todo o país, um mesmo anel de ouro, de 9,1 gramas e 18 quilates, obteve avaliações totalmente distintas. o preço para a jóia variou entre os 100 e os 300 euros, uma diferença de 66%. isto, apesar de a cotação oficial para o metal nesse dia ser de 23,4 euros por grama, o que significa que a peça vale, pelo menos, 211 euros.

o valor artístico do anel e as pedras também não são valorizados. “apenas nos interessa o peso da jóia em ouro”, explicou ao sol um dos prestamistas, lembrando que, se os juros não forem pagos durante três meses, o anel será vendido em leilão a granel para ser reciclado. o mesmo prestamista reconhece que apenas deve optar por penhorar uma jóia “quem tem uma situação urgente e capacidade rápida de pagar o penhor, porque os juros são altos”.

juros por regulamentar há 14 anos

a maioria das lojas de penhores não faz empréstimos sobre o valor total da peça de ouro, mas sim sobre uma percentagem que é geralmente de 60%. e em todas o juro mensal exigido foi de 3% sobre o valor do empréstimo, variando o total cobrado ao sol entre os 3 e os 5,7 euros por mês.

“estes juros, que ao fim do ano ultrapassam os 36%, não só são elevadíssimos, como são ilegais”, denuncia ao sol paulo martinho, presidente da associação dos comerciantes de ourivesaria e relojoaria do sul (acors), que há muito alerta para a necessidade de o governo fazer cumprir a lei e regulamentar os montantes máximos a cobrar no sector dos penhores, que nalguns casos chegam aos 45% por ano.

o responsável lembra que há 14 anos que se aguarda que os executivos publiquem uma portaria com os valores dos juros a aplicar às penhoras de ouro, prata e jóias. “a legislação do sector prestamista, que é de 1999, estabelece que os montantes máximos dos juros sejam fixados por portaria conjunta dos ministérios da economia e das finanças, mas até agora nada foi publicado”, lamenta. e perante este vazio legal, diz o responsável, deve “vigorar a lei geral que estabelece um juro de 4% ao ano”. aliás, a acors solicitou uma explicação escrita sobre o assunto à dgae, que, na resposta, emitida no mês passado, reconheceu que, “perante a ausência da portaria”, a taxa de juro a aplicar é de 4% ao ano.

no entanto, paulo martinho admite que a taxa pode atingir 7%, uma vez que há juristas que defendem que, quando existe um bem físico dado como garantia, pode-se acrescentar àquele valor base (4%) um juro de 3%.

‘avaliação cobrada é indevida’

o problema é que grande parte dos estabelecimentos, além de cobrar juros mensais mais elevados, exige ao cliente o pagamento de outras taxas. “as casas de penhores cobram muitos outros juros indevidos a quem os procura, que são geralmente pessoas em situações de grande fragilidade e que não têm forma de recorrer ao crédito bancário” – alerta arlindo lourenço, gerente de uma empresa de comércio e refinação de metais preciosos, explicando que, logo na altura do empréstimo, as lojas cobram ‘à cabeça’ o primeiro mês de juro. “são o único sector que conheço a faze-lo”, diz o actual vice-presidente da acors. “e ainda exigem uma taxa pela avaliação do bem a penhorar de 1%, quando só os avaliadores oficiais o podem fazer”, acrescenta arlindo lourenço, explicando que, como esta taxa é aplicada sobre o valor da avaliação e não sobre o valor do empréstimo que vai ser feito, há casas de penhores que sobreavaliam as peças para seu próprio benefício.

todas estas situações foram denunciadas por si e por outros comerciantes de ourivesarias numa petição entregue à assembleia da república, em 2011. o parlamento acabou por discutir o assunto e, por unanimidade, os partidos fizeram um conjunto de recomendações ao governo. “fizemos um projecto de resolução sobre casas de penhores mas não teve efeito nenhum”, lamenta a deputada socialista eurídice pereira, que fez o relatório sobre o sector – onde os deputados recomendavam a revisão da legislação existente e a publicação da portaria sobre as taxas de juro nas casas de penhores.

no documento, os deputados já previam que iria haver no país “um acréscimo ao recurso a empréstimos pela via do penhor”, não só pela difícil conjectura económica, mas também “pelas dificuldades de acesso ao crédito bancário dos cidadãos”.

mas, nas recomendações, o parlamento foi mais longe, alertando para a enorme desprotecção de quem vê a sua peça perdida para leilão, por não pagar os juros às lojas.

a lei define que, após o leilão, a casa de penhores deve apenas ficar com o correspondente ao valor da dívida, devolvendo o restante ao cliente. “mas esse valor raramente chega ao destinatário”, diz a deputada do ps, lembrando que as casas de penhoras facilmente justificam a ausência de devolução com a dificuldade em contactar o cliente, uma vez que a lei nem sequer prevê que os estabelecimentos tenham de enviar cartas registadas.

falta de fiscalização

a falta de fiscalização do sector foi outro dos alertas dos deputados. ao governo recomendava-se “uma acção fiscalizadora reforçada” sobre as casas de penhor, “não só em número mas também quanto aos procedimentos a que a actividade está obrigada”.

a fiscalização do sector compete à asae (autoridade de segurança alimentar e económica) que, desde 2011, fez 277 inspecções a casas de leilões, das quais resultaram 69 processos de multa. “as infracções mais verificadas prendem-se com a falta de licenciamento e a falta de pagamento do prémio de seguro” – explica por escrito ao sol fonte oficial do organismo, recusando especificar os casos de irregularidades nos juros praticados nas casas de penhores.

ao sol, o presidente da acors garante que há grandes falhas de fiscalização da asae, mesmo quando as infracções são óbvias. uma das mais gritantes é a compra de peças de ouro pelas casas de penhores. “a única coisa que as casas de penhores podem fazer é emprestar e depois vender as peças em leilão, mas muitas têm cartazes nas paredes a anunciar a compra de ouro”, exemplifica, explicando que há falta de informação detalhada sobre o sector.

por isso, conta paulo martinho, a acors disponibilizou-se para dar formação aos inspectores da asae: “já fizemos essa oferta: vamos dar formação graciosamente”.

joana.f.costa@sol.pt