como surgiu o impossibly funky, bar que abriu há um ano no lx factory?
é um projecto que vive da música ao vivo, do soul, do funk e do blues, e que vive das pessoas adultas, não vive dos jovens. esta zona não tem habituação de noite. estamos aqui no meio de vários espaços fantásticos, como o bolo da landeau ou a cantina, mas são espaços sobretudo de dia. no bairro alto, segue-se para o cais do sodré e depois para o lux. aqui, sai-se do bar e não há outra coisa. tem de se querer vir aqui. e as pessoas vêm porque a música é boa e sentem-se em casa. acho que somos um espaço único em lisboa. tenho um amigo de nova iorque que diz que em manhattan, com este bar, eu ficava milionário. mas eu sou um alfacinha nato.
o que imagina para o futuro deste espaço?
gostava que este projecto evoluísse para um grande festival de soul, funk e blues. estamos a trabalhar para isso. gostava que isto fosse um palco para bandas destes géneros.
os seus espaços vivem muito da sua presença?
nunca tive dúvidas disso. gosto de receber as pessoas, de estar com elas. e fui granjeando, nestes anos todos, um à-vontade com toda as situações. sou sempre uma pessoa tranquila, mesmo no meio da confusão. é normal que, quando gostamos mesmo do que fazemos, as pessoas o sintam e retribuam. ainda no outro dia tive de voltar para trás, estava já a chegar a casa, porque me liga um amigo e cliente a dizer que estava a chegar ao bar. quando se faz o que eu faço, há tantos anos quanto eu faço, e se lida com tanto público quanto eu tenho lidado, dá para perceber quem gosta de nós e quem não gosta. a noite é muito matreira, mas in vino veritas, as pessoas à noite tiram a máscara.
nasceu a 10 de junho de 1958, na guiné-bissau. guarda recordações da terra onde nasceu?
qualquer miúdo que tem uma infância divertida recorda-se das brincadeiras e de pormenores como o cheiro da terra, dos frutos… mas não são memórias muito vivas. nasci na guiné-bissau, sou de etnia balanta. os meus pais trabalhavam na terra. vim para portugal com sete anos e vivo na baixa de lisboa desde essa altura, tirando dois anos em almada e outros dois em oeiras. mesmo nessa altura, vinha todos os dias a lisboa.
como veio para portugal?
os meus padrinhos vinham e resolveram trazer-me porque era mais fácil viver cá… há ali uma guerra que dificilmente será resolvida. são várias etnias antagónicas a habitarem a mesma terra.
percebeu por que estava a sair sem os seus pais?
não percebi, como é evidente. mas gostei de ter vindo – tanto gostei que ainda estou cá. no fundo foi uma bênção. não foi dramático vir para cá.
qual a primeira imagem que o marcou em lisboa?
lembro-me de ficar especado porque nunca tinha visto tanta luz. passei a noite inteira a olhar para a cidade. nasceu aí um amor para a vida inteira. vivia na rua do ferragial, uma transversal à rua do alecrim. estudei no externato paroquial, no largo da biblioteca. esta foi sempre a minha zona de conforto.
lisboa passou a ser o seu recreio?
sim, um recreio grande. apesar de ter regras. saía de casa de manhã, de bata, para ir para a escola, estava na escola até às quatro e depois brincava até às seis. a essa hora tinha de estar em casa.
fez amigos facilmente?
amigas. foram mais meninas do que meninos. a primeira recepção calorosa foi das meninas. os meninos só vieram depois porque me viram a brincar com as meninas e isso dava-lhes jeito. foram-se aproximando e transformei-me de figura estranha em ídolo porque quando fazíamos corridas, ganhava; quando jogávamos à bola, era o mais dotado…
era o único africano?
sim. a primeira vez que me chamaram preto, bati no rapaz. depois ficámos grandes amigos. mas deixei de ligar a isso. e nunca me chamaram preto. era hernâni ou miguel.
tinha noção de que portugal era um país cinzento, que vivia sob uma ditadura?
percebi que portugal era um país muito estranho. fiquei a viver com os meus padrinhos de baptismo, uns portugueses que viviam entre a guiné e portugal. nunca tiveram filhos, eu fui o filho deles. era uma família educada, com muitos conhecimentos, e nada me foi escondido. ainda por cima, morava a 100 metros da pide e tinha um amigo cujo pai, na altura, trabalhava ali. aos 12 anos já sabia perfeitamente o país onde estava. e tinha noção do que podia e não podia dizer. tinha uns amigos fantásticos, alguns eram do mrpp, outros da uec, e falávamos imenso. o nosso ponto de encontro era a brasileira.
nunca voltou à guiné-bissau?
nunca. a minha terra é lisboa. a minha paixão é lisboa. sou um alfacinha. quando me convidam para ir almoçar a cascais, pergunto logo por que não almoçamos em lisboa.
nunca teve vontade de conhecer as origens?
não sou uma pessoa muito ligada a nada. só a lisboa e à minha filha. claro que o contacto se manteve sempre, os meus pais continuam vivos. mas não sou uma pessoa da saudade, não ganhei isso de lisboa. não vivo do passado.
os seus pais alguma vez vieram visitá-lo a lisboa?
quando eu era jovem.
era bom aluno?
não. tinha a nota mínima para passar.
o que pensava para o seu futuro?
com 15 anos nunca tinha pensado. e acho que, se tivesse pensado, seguramente me teria enganado. em todas as etapas da minha vida fui sempre ultrapassando barreiras e fui sempre tentando ser feliz. nunca tive o objectivo de ser isto ou aquilo. recordo-me de um professor me perguntar o que queria ser e, como tinha um amigo que queria ser engenheiro, disse que também queria ser engenheiro. não sou nem nunca serei engenheiro.
chegou a estar com um pé numa carreira no desporto?
toda a gente dizia que eu tinha apetência, que era rápido e destemido. quando vou para os salesianos começo a jogar lá. fiz andebol, atletismo, futebol, remo e durante pouco tempo treinei râguebi.
ainda competiu?
sim, mas quando optamos por estar com os amigos em detrimento de uma carreira, por muito bom que se seja, chega-se a uma altura e acabou. não fui suficientemente profissional. preferia estar com os meus amigos. mas não há arrependimento.
apesar de não saber o que queria para o seu futuro, começou a trabalhar muito jovem. porquê?
fui para uma firma de ar condicionado. aos 17 anos parei de estudar. só mais tarde concluí o 12.º ano, à noite. queria ser independente. aos 18 anos já vivia à minha conta. somos quatro amigos, damo-nos ainda hoje muitíssimo bem, trabalhámos todos na mesma firma de ar condicionado, e fomos juntos para uma casa onde estivemos uns dois ou três anos. a casa era em almada e não pagávamos renda, por isso sobrava dinheiro. era uma boa vida. a parte negativa era que só havia três camas e nós éramos quatro. quem chegasse primeiro tinha direito às camas. e todos tínhamos namoradas.
foi namoradeiro?
qb. tive mais amizades do que namoros.
lembra-se da primeira namorada séria?
não. nunca fui uma pessoa muito séria… continuo a não ser.
ainda assim diz que ficam todas suas amigas…
na minha vida não me tenho portado sempre bem… mas no geral, o bem ganha. uso uma frase que não é minha, é de um grande músico brasileiro: ‘eu sempre estive no caminho do bem’. é isso que me caracteriza. e curiosamente estive sempre muito próximo da linha do marginal. andei no casal ventoso, na musgueira, tive muitos amigos por lá, alguns morreram nas drogas. eu nunca fumei sequer um charro.
mas nunca teve curiosidade?
nunca. naquela idade o meu foco era o desporto. também nunca fumei tabaco e nem uma passa num charro dei. mas não preciso, caí no caldeirão, tenho a energia toda em mim.
quando começa a organizar festas no liceu passos manuel?
estudava à noite e trabalhava na firma de ar condicionado. eu e uns amigos começámos a organizar umas festas no passos manuel e depois noutros sítios. foi a partir daí que entrou o bichinho. já nessa altura eu era dj em alguns clubes recreativos e desportivos. os clubes eram uma espécie de família, conhecíamo-nos todos. conhecia muita música, sabia o que era novo, de jimi hendrix a jethro tull… entretanto começo a perceber que me é relativamente fácil deslocar pessoas para aqui e para acolá. o carmo, a bica e o bairro alto eram bairros rivais e eu dava-me bem com essa gente toda. um dia, um amigo meu cujo pai tinha um bar de meninas no cais do sodré, fez lá uma festa e eu fui pôr música. a partir daí às sextas, sábados e domingos eu era o dj residente da casa.
como chega ao bairro alto?
conheci o bairro antes de 74, quando havia duas discotecas: o barracuda, o barbarella e um sítio muito manhoso de prostitutas e polícias chamado ascott. em 1982, quando vieram cá os u2, o eduardo da jukebox queria ir e perguntou-me se eu queria ficar a tomar conta da casa. fiquei eu e o zé da guiné, já éramos amigos. quando ele voltou percebeu que aquilo tinha tido mais sucesso do que quando ele estava. éramos mais divertidos.
e depois?
ainda continuei a trabalhar no ar condicionado. só saí quando quis ir ver uma competição desportiva em espanha e não me deixaram. a seguir ao 25 de abril foi como se vivêssemos de olhos fechados e, de repente, nos abrissem os olhos. o bairro alto sempre foi um sítio de tolerância e por isso foi ali que abriu tudo. nesta altura conheci o pedro lata no trumps e ficámos os dois com o lábios de vinho. de dia vendíamos discos que vinham de londres e botas dr. martens. à noite escondíamos tudo, o pedro ia para a cozinha e fazia um manjar para os amigos que iam aparecendo, como a lena aires, a xana guerra… o movimento de pensadores e vanguardistas estava todo ali.
dormia-se nessa altura?
alguns dormiam. eu dormia. mantive sempre um rigor tremendo. só assim estou aqui. ainda hoje saio até às 5h ou 6h, mas chega uma altura em que desapareço. nunca estiquei a corda até ela partir.
até porque nem álcool bebia.
pois não. só comecei a beber álcool aos 35 anos. num bar bebi um mojito ou uma caipirinha e fui bebendo. depois enjoei porque era doce demais. e passei para os uísques irlandeses.
como surgiram as noites longas?
o zé da guiné fez uma festa chamada noites longas e perguntou se queria associar-me. disse que sim, mas não tínhamos condições financeiras. fui falar com o mário, do artis, associámo-nos e fizemos as noites longas. foi um marco numa geração e em lisboa, uma viragem na noite da cidade. até ali nada estava aberto até às 6h ou 7h, depois aparecem o plateau, o kremlin e o alcântara mar.
o zé da guiné morreu recentemente…
foram 14 anos a lutar. penso que não há memória, na europa, de alguém ter vivido tantos anos. o zé era um lutador. foi um homem da resistência contra o colonialismo e até na morte foi um resistente. um grande senhor. a cidade de lisboa teve um ás e um joker. o joker era o zé e o ás era o pedro lata.
e o hernâni?
era só mais um elemento da família.
temos tendência, em portugal, a não dar valor às pessoas que não tiveram o cargo do fato e da gravata?
nenhum de nós os três teve essa pretensão, mas também sabemos que contribuímos imenso para uma lisboa menos racista e mais tolerante, e contribuímos para dar alegria às pessoas. foi toda uma geração que fez acontecer.
no entanto, se perguntar a um miúdo de 20 anos, não sabem quem são.
é normal. fiz o que tinha que fazer. e acho que ainda só vou a metade do percurso da minha acção. não digo em termos do paradigma da cidade e das pessoas, porque isso já mudou imenso.
como surge o targus?
foi um espaço mítico no bairro alto nos anos 90 porque é um espaço que vem marcar uma posição fortíssima, entre os três pastorinhos e o frágil. tive duas arquitectas que fizeram o primeiro bar de arquitectura no ba. isso trouxe-me logo um núcleo de pessoas da arquitectura para conhecerem o bar. e mais uma vez tive o apoio e amizade do pedro lata e do zé da guiné. e começou tudo a parar ali. o miguel esteves cardoso mostrou-me coisas que devia ter em termos de bebidas, como o jameson. outros ajudaram a montar as conversas de café, as noites de poesia. o targus tornou-se um bar muito ligado à cultura. e foi o primeiro bar em lisboa com um staff totalmente negro, com mulheres e homens lindíssimos, que partiram corações.
o que correu mal?
foi uma zanga com um dos meus sócios. mas já passou. achei que o targus tinha mais para dar. mas tudo tem um ciclo, o targus foi uma geração. percebi isso com antecedência e quis dar a volta ao bar, mas os meus sócios não concordaram. chega uma altura em que percebo que aquele já não é o meu projecto. saí e deixei o bar com os meus sócios. abandonei um projecto que marcou lisboa e fui para outro que me deu um gozo incrível: a fábrica da pólvora, de barcarena, onde estive dez anos.
mas não se conseguiu manter longe de lisboa…
fiquei uns meses à frente dos antigos pastorinhos, o napron, com o ricardo vasconcelos e o josé luís pimenta. começou a correr muito bem, mas muitas vezes não estava cá e isso foi péssimo. depois abro o diferenza, mas era uma localização complicada no bairro alto. tem sido sempre fácil mudar.
nunca se zangou com o bairro alto?
nunca deixei de ir ao bairro alto, vou lá todas as semanas. vou ver uns miúdos que conheço desde pequenos, quando tomavam conta do targus durante o dia. depois vou ao páginas tantas, ao último tango, à taberna, ao clube da esquina, passo no arroz doce e fico na tasca do chico.
nunca pensa que gostaria de ter a vida mais convencional de alguns dos seus amigos, com um emprego mais formal e uma família?
não. era impossível ter acontecido. cheguei a estar próximo disso, mas não aconteceu. foram opções que tomei. nunca gostei de estar confinado a um sítio. não queria uma vida sedentária. e continuo a não querer. sou assumidamente um irrequieto.
a sua filha tem curiosidade em conhecer as suas aventuras?
tem, mas não lhe conto nada. de vez em quando descobre fotos e ri-se imenso dos fatos que eu usava. mas ela não é apaixonada pela noite. desafio-a e ela prefere ficar em casa.