O bairro de todas as classes faz 500 anos

O que há 500 anos distinguia o Bairro Alto é o mesmo que ainda hoje o define: casas humildes ao lado de palacetes. A colina lisboeta continua a ser um postal de todas as classes.

o bairro alto comemora no dia 15 de dezembro 500 anos, contados da primeira data conhecida do seu aforamento. é hoje, como no século xvi, “um bairro extremamente heterogéneo, do ponto de vista populacional e arquitectónico”, explicou à agência lusa a arquitecta fabiana pavel, doutoranda em reabilitação urbana pela universidade técnica de lisboa, com uma tese sobre o bairro.

esta diversidade tem origem na forma como os proprietários do terreno o dividiram: “procurando aproveitar ao máximo o espaço, para rentabilizá-lo, partiram de um módulo de base — que era o chão, uma medida agrária medieval que corresponde a cerca de 6,6 metros por 13,20 metros — permitindo que a área arrendada correspondesse às possibilidades económicas de cada família”, explicou a arquitecta.

foi esta medida de base que permitiu que o bairro — na altura vila nova de andrade — acolhesse “todos os tipos de edifícios, desde os pequenos, que eventualmente ocupavam meio módulo (meio chão), até aos palacetes da aristocracia, que podiam ocupar mais de uma dezena de módulos”.

em 1553, os jesuítas instalaram-se no bairro, que passa a chamar-se bairro alto de são roque (o santo protector das pestes).

a zona não sofreu com o terramoto de 1755, mas foi depois dessa catástrofe que ganhou a forma que lhe conhecemos hoje: “as grandes ruas à volta do bairro alto, da misericórdia e do século e a calçada do combro — as fronteiras do bairro — foram alargadas e viram erguer-se aí edifícios em estilo pombalino, que criaram uma verdadeira barreira física”.

o terramoto marca também o início da “decadência” do bairro, com o “gradual abandono” pelas elites dos palacetes, onde se instalaram “verdadeiros lupanares e casas de má frequência” associados à prostituição, disse à lusa o conservador do museu nacional de arte antiga anísio franco.

outros desses espaços acabam por ser aproveitados também pelas empresas jornalísticas, entre o início do século xix e a segunda metade do século xx, fazendo do bairro alto a “capital da imprensa portuguesa”.

“as cocheiras e cavalariças [dos edifícios agora vazios, vendidos] adaptam-se muito bem à instalação das oficinas tipográficas e nos restantes pisos instalam-se as redacções e as administrações dos jornais”, contou o coordenador da hemeroteca municipal de lisboa, álvaro costa de matos.

com a chegada dos jornais, “o bairro fervilha”. abrem tabernas, tascas, casas de pasto, botequins, casas de jogo e “dispara a prostituição e uma série de actividades associadas a este negócio”, como o cinema pornográfico, a par de outras, “artísticas e culturais, que transformam o bairro na capital da boémia oitocentista” e o mantêm “acordado de dia e de noite”.

na década de 1980, conquista um lugar como “a zona mais animada” da noite lisboeta, com a abertura, numa antiga padaria, da discoteca frágil, de manuel reis, que acaba por se tornar num “verdadeiro fenómeno” da capital, ao qual “afluíam as mais prometedoras camadas de intelectuais e criadores de então”, recordou anísio franco.

às portas do século xxi, o bairro acaba por se “democratizar” e com essa democratização, considerou o historiador, veio uma “massificação descaracterizadora” da zona histórica.

hoje continua a ser ponto obrigatório da noite lisboeta, mas é uma noite “descaracterizada”. existem vários bares e lojas de conveniência que vendem bebidas baratas a jovens, que as consomem na rua, madrugada dentro, por vezes incomodando moradores.

“as pessoas que vêm ao bairro à noite consomem-no. não vivem o bairro, não sabem nada sobre ele. só vão lá para beber. todas essas coisas em conjunto fazem com que o bairro se esvazie de conteúdo, de identidade e da sua vida”, concluiu fabiana pavel.