‘A pessoa existe para além da doença’

Dignidade. Uma palavra muito repetida e até banalizada nos dias que correm. Hoje procura-se conferir dignidade a tudo o que se faz, a começar pelas tarefas mais básicas do quotidiano. Mas só há pouco tempo se associou este conceito à medicina. Em 1995, um grupo liderado pelo Professor Chochinov (psiquiatra) da Universidade de Manitoba, no…

tendo estas linhas como ponto de partida, foi criada a terapia da dignidade, que consiste numa única sessão de psicoterapia que dura entre 60 a 80 minutos. ali o doente fala “sobre os acontecimentos mais relevantes da sua existência, aquilo que aprendeu com a sua vida e com a adversidade que a doença lhe trouxe, quais são as palavras que quer deixar a quem mais ama, que conselhos quer deixar ditos”.

numa primeira fase, é entregue ao doente um protocolo com perguntas orientadoras para reflectir sobre o que quer abordar. “queremos que pense quais são os pontos dentro da terapia, quais são aquelas vertentes da sua vida que quer ver mais enfatizadas, quais são os aspectos importantes que quer transmitir aos outros”. o terapeuta regista em áudio a sessão e utiliza “a metáfora do álbum de fotografias”, ou seja, pede para que o doente imaginar a sessão como uma compilação de imagens dos momentos mais marcantes da sua vida – “tentamos ao máximo que a pessoa consiga descrever com profundidade esta fotografia, indo às sensações que lhe traz, às personagens que contém, às emoções, aos cheiros, às cores. aquilo que designo como dignidade límbica, do sistema límbico, das sensações, das emoções”. amor, perdão, lealdade e o sentido de dever são os temas mais abordados. além disso, os pacientes desejam “frequentemente que o mundo seja melhor globalmente e melhor para as pessoas que amam”.

uma vez que se trata de uma terapia breve, não pretende analisar os momentos mais difíceis da vida do paciente. o intuito “é que a pessoa em fim de vida sinta que existe para além da doença. muitas vezes a medicina retirou-nos aquilo que somos, somos apenas a doença e não a pessoa por detrás dessa doença”. esta sessão é posteriormente transcrita e editada pelo terapeuta o mais breve possível para um documento legado. assim que estiver finalizado, é entregue ao doente, que o pode alterar antes de o entregar à pessoas que mais ama (familiares, amigos, etc.). “toda a construção da terapia da dignidade está feita para devolver autonomia e controlo à pessoa em fim de vida. devolvemos-lhe um empowerment, ou seja, isto é sobre a pessoa porque ela interessa e porque aquilo é o seu momento”.

esta terapia, por norma, aplica-se a pessoas que se encontram em fim de vida, com doenças terminais e que geralmente estão em cuidados paliativos. a equipa médica propõe a terapia da dignidade a doentes que apresentem ‘sintomas’ como “sofrimento existencial, com questões sobre a vida, e que possam ter também algum tipo de tristeza ou de necessidade de falar sobre si” . porém, também está disponível a qualquer indivíduo, internado ou não, que tenha uma doença crónica. apenas os pacientes com doenças que possam afectar a percepção da sua vida (pessoas com demências, delírios ou depressão major) não podem participar.

uma herança familiar

quando esta terapia é apresentada ao doente em fim de vida é-lhe dito que o ‘produto final’, o documento legado, é para ser entregue pelo próprio às pessoas que mais ama. “na generalidade, o documento legado tem um grande poder sobre o relacionamento entre as pessoas, sobre a descoberta ou redescoberta de determinados aspectos que estavam muito esquecidos, e é muito bem recebido tanto pelos doentes como pela família”.

para as famílias, é visto como “algo que fica para além da morte e que foi deixado propositadamente para os outros”. uma vez que o documento contém histórias que estes pacientes vão deixar a outros, o terapeuta precisa de pesar o conteúdo, de modo a que não se torne penoso para quem o recebe. “tentamos inverter os papéis para que a pessoa perceba o que o outro iria pensar e sentir se soubesse desta história. estamos a falar de algo que se disse e ficou escrito. nós, como terapeutas, temos de olhar em primeiro lugar para a pessoa em fim de vida e, em seguida, olhamos para quem recebe o documento”.

em portugal, três doentes optaram por não entregar este documento, alegando: “este documento é importante porque fala sobre mim e no decurso da minha doença, eu regressarei a este documento e irei lê-lo quantas vezes necessitar para sentir que sou eu, que consigo ainda olhar para a minha história de vida que foi muito retirada pela doença, consigo olhar para a minha existência de outra maneira”. nos três casos, o documento foi destruído após a morte dos pacientes, que consideraram ter dito às suas famílias tudo o que havia para dizer.

o destino do documento legado tem de ser esclarecido muito cedo pois, caso o doente faleça no decurso da terapia, o terapeuta tem de saber o que fazer com o resultado da sessão.

a terapia da dignidade, que chegou a portugal há três anos, é ainda desconhecida para a maior parte da população. mas vários estudos têm demonstrado os benefícios para os doentes: “a terapia da dignidade tem mostrado ao longo dos estudos realizados um claro alívio no sofrimento existencial, na ameaça ao sentido de dignidade, e começa lentamente, principalmente com a nossa evidência portuguesa, a mostrar uma eficácia nos sintomas depressivos e ansiosos”. miguel julião realça que “dignificar é urgente e essencial”. antes de tudo, é necessário começar a olhar-se para “a pessoa acima da doença”. e acrescenta: “temos muita tendência para desumanizar os cuidados e amputar a esperança”.

de resto, não é preciso ter formação em terapia da dignidade para começar mudar este estado de coisas. “eu seria apenas uma gota no oceano do mundo médico mas este oceano pode começar a pensar a humanização e a dignificação dos cuidados. isso está ao alcance de todos”.

rita.porto@sol.pt