‘O azar é para quem fica em casa’

Sexta-feira 13 até pode ser dia de azar no resto do mundo, mas em Montalegre é sinónimo de festa. A vila transmontana enche-se de gente que vem de todo o lado para dançar, beber, assistir ao espectáculo e, claro, provar a Queimada, bebida medieval que protege contra espíritos e feitiços.

há quem traga um chapéu de bruxa, quem opte por uns cornos de diabo, quem prefira uma maquilhagem assustadora e quem venha simplesmente com um sorriso na cara. halloween fora do tempo? carnaval antecipado? nada disso. aqui celebra-se a sexta-feira 13.

a data tornou-se numa espécie de símbolo universal do azar, mas em montalegre, terra de muitas crenças e superstições, isso não desencoraja uma saída à noite. “sexta-feira 13 é diversão”, diz-nos maria josé afonso, enquanto nos guia pelas ruas apertadas da vila.

“nesta noite parece que tudo se liberta, tudo se transforma. e viajamos ao nosso imaginário infantil, onde podemos participar neste mundo das bruxas”, explica a jornalista da terra, que acompanha as sextas 13 vai para dez anos.

em média, cada noite destas atrai 20 a 30 mil pessoas, boa parte delas vindas de fora. de lisboa, porto, galiza, braga, viana ou barcelos, de onde viajou ana filipa, juntamente com os amigos, para conhecer a movida montalegrense.

“pode ser dia 13 mas não tivemos azar. só se for agora ao ir para casa”, conta ela, rapidamente corrigida por alguém que, no meio da confusão, lembra que regressam “só depois da meia-noite”.

a conversa faz-se à porta do bar conhecido pelas duas cabeças de boi à janela, ponto de passagem obrigatório na romagem às tascas e bares, depois do espectáculo no castelo. a noite começa umas horas antes, à mesa dos muitos restaurantes que entram no espírito e preparam decoração, animação e menu alusivos à data, com iguarias como ‘caldo de urtigas colhidas à meia-noite’.

decididamente, para a restauração a noite não é de azar. “muita gente compara este dia a muitos dias do mês de agosto, há muitos anos atrás, quando vinham os emigrantes”, explica o presidente da câmara, orlando alves. garante que o evento veio para ficar e talvez seja “preciso construir outro castelo noutro sítio, porque já não cabemos ali todos”.

o castelo é o palco do momento alto da noite. a encenação com actores contratados conta uma história de amor, baseada em lendas locais. mas é apenas o aquecimento para a entrada em cena do padre fontes, o homem que entranhou o gosto pelas sextas-feiras 13, em montalegre.

“não há razão para temer este dia. o que aqui fazemos é precisamente para acabar com esse tipo de crenças”, explica, logo depois de ter saído do palco, onde acabou de dar o toque final na famosa queimada. uma bebida que dizem ter propriedades mágicas, de origem medieval e muito popular entre as gentes da galiza e daqui do barroso. consta que serve para afugentar os demónios e espíritos.

servida ao público e consumida em doses generosas durante o resto da noite, é confeccionada num caldeirão com aguardente, maçã, limão e açúcar. mas não seria mais do que uma bebida quente e de sabor intenso se não levasse o ingrediente secreto chamado ‘esconjuro’, uma espécie de reza que termina com o apelo: “se é verdade que tendes mais força que a humana gente / aqui e agora, fazei com que os espíritos / dos amigos que estão fora / participem connosco nesta queimada”.

ora, a queimada até pode ser a bebida oficial da sexta-feira 13, mas na banca de marisa santos o campeão de vendas é o licor afrodisíaco levanta o pau. “é a minha mãe que o faz e dizem que resulta mesmo”, explica a comerciante de vilar de perdizes, precisamente a freguesia onde tudo isto teve início.

foi lá que o padre fontes começou a organizar, há 27 anos, os congressos de medicina popular, que colocaram a aldeia no mapa e abriram a porta da região a um novo nicho de mercado. vieram depois as noites das bruxas no halloween e, há coisa de dez anos, surgiram os jantares da sexta-feira 13.

na banca ao lado, a estreante sandra veio de viana para vender bijutaria, mas não parece especialmente impressionada pelo movimento. a noite está mais virada para lubrificar gargantas e forrar estômagos do que para enfeitar orelhas e pescoços.

a restauração (um jantar para dois pode custar 120 euros), e a hotelaria, com dormidas esgotadas num raio de 50 quilómetros, são quem mais tem a ganhar com esta industrialização do oculto, que tornou montalegre naquilo a que alguns já chamam de ‘cluster esotérico’.

tanta animação tem o seu custo – 100 a 150 mil euros, nas contas da câmara –, envolve cerca de 200 pessoas, entre pessoal da autarquia, voluntários e artistas contratados – e leva cinco meses a preparar. daí que já se comece a pensar na próxima, em junho do ano que vem. já de saída, salta-nos ao caminho azevedo – o primeiro nome saiu abafado pela música de uma banda ambulante –, a quem esta data não assusta por aí além: “azar? o azar é para quem fica em casa e não vem à festa”. nestes dias aposta “mais dois euros no euromilhões, por via das dúvidas”.

desta vez não ganhou nada, por isso seguiu o conselho do colega de copos e foi comprar o licor afrodisíaco. já que a sexta-feira 13 foi dia de azar ao jogo, que ao menos seja de sorte no amor.

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