E do palácio se fez arte

Mandado construir pelo avô do Marquês de Pombal, o Palácio Pombal é a casa da Carpe Diem Arte e Pesquisa. Uma instituição sem fins lucrativos que tem atraído cada vez mais visitantes e que vê nas pedras, na luz e em “toda esta poeira” do próprio espaço uma base fundamental para a criação artística.

localizado no bairro alto, o palácio pombal possui uma fachada simples e austera. mas no interior, enriquecido ao longo de quatro séculos, domina o estilo rococó. um dos elementos mais característicos é a imponente escadaria, adornada com duas esculturas também de mármore: uma de vénus, no patamar inferior, e outra de hércules, na parte de cima. o elaborado tecto não passa despercebido enquanto se sobem os largos degraus que nos conduzem ao segundo piso, onde se encontram os salões nobres e a capela.

cada sala foi baptizada consoante a cor dominante: a sala azul, a sala vermelha e a sala branca, todas com tectos trabalhados e despidas de mobília. nas traseiras, existe um jardim: uma fonte, actualmente sem água, e envolvida por duas árvores centenárias, ocupa o centro e uma família de pavões faz daquele espaço a sua casa.

sebastião josé de carvalho e melo, o marquês de pombal, estaria longe de imaginar que o palácio edificado no século xvii pelo seu avô viria a tornar-se, no século xxi, um centro de produção e exibição de arte contemporânea. após anos sem utilização, o espaço foi cedido pela egeac (empresa de gestão de equipamentos e animação cultural) à carpe diem arte e pesquisa, criada em 2009. esta instituição independente e sem fins lucrativos tem como principal objectivo “a produção e a divulgação da arte contemporânea”, explica lourenço egreja, director artístico e actual curador. o falecido mentor da associação – o curador brasileiro paulo reis – tinha o sonho de “que houvesse um sítio em lisboa que funcionasse como espaço de encontro ente curadores, artistas, críticos, profissionais da área da arte contemporânea”.

nos últimos meses, o centro foi um dos locais onde decorreu o doclisboa e a 3.ª edição da trienal de arquitectura – que se encontra no palácio até amanhã -, com a exposição a realidade e outras ficções. as peças ali expostas têm servido de pretexto e ponto de partida para jantares, debates ou conversas.

desde 2009 que a carpe diem tem tentado injectar vida no local, convidando artistas nacionais e internacionais quer para criar e trabalhar nas instalações do palácio – um projecto a que deram o nome de residências -, quer para ali expor o fruto do seu trabalho: “obras do lugar para o lugar, a isto chama-se site specific”. a associação emprega ainda funcionários e estagiários, que se dedicam a ajudar os artistas (e a aprender com eles) na criação das suas peças. “em suma, a carpe diem são três coisas: um palácio, um projecto curatorial e um projecto educativo. os artistas propõem um projecto, nós analisamos, financiamos, e executamos sempre consoante o espaço”.

financiada pela direcção-geral das artes, a instituição conta também com o apoio da egeac, de várias embaixadas (nomeadamente a dos eua), do goethe institut, do institut français e do instituto italiano de cultura, entre outros.

durante os períodos de residência, a carpe diem procura promover actividades com os artistas, através de masterclasses e workshops. e há ainda acordos com universidades internacionais ligada às artes: “fizemos uma parceria com a catholic university of america, em washington, e vieram para portugal nove mestrandos de arquitectura, durante um mês, viver no palácio, no âmbito de uma cadeira do curso”.

as exposições têm por norma uma duração de três meses e frequentemente extravasam as paredes do palácio pombal. através do projecto itinerâncias, as obras são levadas a vários pontos do país e, por vezes, chegam mesmo a atravessar fronteiras. a primeira ‘itinerância’ foi em óbidos e a seguinte chegou à casa de la parra, em santiago de compostela. “isso é o argumento da descentralização. não há nada mais fascinante do que produzir uma obra e depois mostrá-la noutro sítio”.

a ‘síndrome do velcro’

a maioria dos visitantes da associação são portugueses interessados e conhecedores do meio da arte contemporânea. “já sabem o que vêm encontrar: novas peças, novas experiências, novas leituras, novas problematizações”, nota lourenço egreja. “cada artista traz sempre uma nova linguagem, cada peça tem uma nova linguagem”. o interesse pelo que acontece no palácio pombal tem crescido: se na abertura deste centro, a média diária de visitantes rondava as 15 pessoas, este ano já quase chega aos 60. o curador da carpe diem justifica o aumento com a diversidade de actividades que a instituição tem para oferecer: adapta-se tanto ao público que quer ver exposições de arte contemporânea como àqueles que procuram cursos com criadores nacionais e internacionais. a estes juntam-se os que pretendem apenas visitar o palácio ou ver os seus azulejos. “isto para mim é que é um serviço público: temos dinheiros públicos, um edifício público, a comunidade e a devolução do edifício à comunidade”.

ao contrário do que se possa imaginar, a carpe diem nada teve que ver com o restauro do palácio. de resto, isso nem está nos planos da instituição. “se [o palácio] fosse restaurado, seria outro projecto. o que é certo é que o projecto nasce destas entranhas, destas camadas, da pedra, da luz e de toda esta poeira que está aqui, do gesso que cai e que não cai, da parede que é torta. tudo isso é trabalhado na curadoria e depois nas obras de arte”. a instituição preferiu antes recuperar apenas o essencial para assim poder ‘moldá-lo’ às obras de cada artista: “é claramente um espaço experimental. podemos fazer as peças que jamais o artista poderia fazer numa galeria, onde tem constrangimentos estéticos no sentido de tentar agradar ao seu público. aqui o artista pode ser mais ousado, pode extravasar, pode fazer uma experiência porque o curador – que sou eu – também incentiva isso”.

tratando-se de “um sítio onde chocam vários projectos”, o palácio também atrai propostas de outras instituições. em dezembro de 2012 recebeu uma performance da coreógrafa olga roriz, o que trouxe um público diferente do habitual. “nós temos o nosso projecto e funcionamos como ‘síndrome de velcro’, ou seja, atraímos outros projectos. como é um espaço público, vamos recebê-los e permitir que também tenham uma voz e uma dimensão na sociedade portuguesa”.

a associação cultural sobrevive graças a uma bolsa da egeac, utilizada quase exclusivamente para despesas de estruturas, desde os materiais para a produção das obras aos salários dos colaboradores. um valor que não chega para fazer face aos custos da manutenção (vidros, internet, limpezas, entre outros). por isso, a carpe diem criou o projecto os múltiplos, em que são replicadas séries de 30 imagens de obras de criadores que já expuseram no palácio. neste momento, existem réplicas de 72 obras de artistas como daniel blaufuks, josé pedro croft, pedro calapez, entre outros. cada peça é vendida a 150 euros, com direito a um certificado assinado pelo autor. “tentámos criar um objecto que as pessoas sintam confiança em adquirir. comprar uma fotografia aqui é totalmente diferente de fazê-lo numa loja qualquer”, explica o curador. o projecto permite ainda que as peças cheguem a novos públicos. em fevereiro, as réplicas estiveram em exposição na capital espanhola, no rio de janeiro e em washington d.c.

numa altura em que muitos se queixam que a cultura é uma das áreas mais martirizadas pelas políticas de austeridade, a instituição parece conseguir viver com a crise económica. “se a necessidade de ir buscar dinheiro é permanente, nós temos conseguido colmatar estas dificuldades. temos conseguido ir buscar o dinheiro ao sítio certo, há instituições que investem e isso acaba por criar uma narrativa. os investimentos não se esgotam no momento em que se fazem: se determinada embaixada ou instituto ou sponsor ficou satisfeito, provavelmente se apresentarmos outro projecto vai voltar a envolver-se”.

rita.porto@sol.pt