vou a washington nesta época há mais de trinta anos. dantes, quando ia acompanhado, voltava por nova iorque, onde o natal era já uma festa, entre as luzes da broadway e da quinta avenida, o impasse do hotel roosevelt (que inspirou o centro de gotham city), as missas festivas e cheias de st. patricks, e aqueles christmas carols em cadeia, entre o religioso e mundano, do sinatra e do nat king cole. e sempre – na pobreza, na riqueza ou na mediania – a procura de um restaurante para jantar a dois, que era o melhor do mundo porque éramos dois, os dois.
levels of life (alfred a. knopf, new york, 2013), o último livro de julian barnes que acabei agora na viagem a paris, agarra, toca e magoa, também por estas memórias. começa assim: “juntam-se duas coisas que antes não estavam juntas. e o mundo transforma-se. pode não se ver, na altura, mas isso não importa. mesmo assim, o mundo mudou”.
este primeiro parágrafo de levels of life parece não ligar com o que se segue, as aventuras dos entusiastas da aerostática, na segunda metade do século xix: o coronel fred burnaby, a actriz sarah bernhardt e félix tournachon que, em datas, lugares e estilos diferentes, subiram aos céus em balões baptizados ‘o eclipse’ (burnaby), ‘dona sol’ (bernhardt) e ‘o gigante’ (tournachon). a memória histórica e anedótica dos seus feitos, encontros e desencontros, preenche as duas primeiras partes do livro, the sin of height e on the level. burnaby amou bernhardt, juntaram-se algumas semanas, mas não ficaram juntos.
a chave vem na terceira parte, the loss of depth. que começa assim: “juntam-se duas pessoas que antes não tinham estado juntas. (…) algumas vezes funciona, e então alguma coisa nova acontece e o mundo transforma-se (…). estivemos juntos trinta anos. eu tinha trinta e dois quando nos encontrámos, sessenta e dois quando ela morreu. o coração da minha vida, a vida do meu coração”.
é da mulher, pat kavanagh, de que barnes fala. para contar a vida dele, depois dela; e contar a perda, o sofrimento, a aprendizagem (mal-sucedida) de viver e sobreviver na memória. fala dos sonhos com ela e sem ela, da irritação com os vivos e com coisas que os vivos, por bondade ou obrigação, dizem para nos consolar da falta dos nossos mortos. e lembra que, “quando matamos ou exilamos deus, matamo-nos a nós próprios”, pois se “não existe deus, não existe vida depois da vida, e então não existimos nós”.
o que pensa e sente e a coragem com que analisa e escalpeliza o quotidiano dos cinco anos depois de pat, é uma pequena obra-prima sobre a condição humana. que se lê de outro modo – e mais difícil – quando o que ele conta também nos diz respeito.