seguiram-se mais duas tentativas mas eusébio nem sequer conseguiu autorização para se equipar. um erro que o treinador da filial do benfica em lourenço marques, capital da então província ultramarina de moçambique, não tardou a constatar. contra a sua vontade, o prodígio de mafalala acabou no sporting local e cedo mostrou a sua capacidade. “logo no primeiro jogo defrontámos o desportivo e marquei três golos. chorei baba e ranho por ter marcado ao meu clube”.
de riscas verdes e brancas, eusébio ajudou o clube a conquistar um título que fugia há seis anos, contribuindo com 29 golos em 12 jogos. depois de coluna e matateu, surgia uma nova pérola do grupo “pé-descalço” de mafalala que despertava a cobiça dos maiores clubes portugueses. os ‘leões’ de lisboa, por via da proximidade com a sua filial de lourenço marques, terão sido os primeiros a avançar. mas a proposta, que previa apenas um período à experiência, foi rejeitada pela mãe de eusébio, elisa anissabeni.
todos atrás de ruth malosso
“o benfica deu dinheiro grande”, explicou mais tarde ao jornal a bola a progenitora sobre a polémica transferência que culminou com a concretização do sonho de jogar ao lado de mário coluna, com a camisola do benfica. não sem que antes se arrastasse um processo jurídico com episódios rocambolescos como a chegada a lisboa com o nome de código ruth malosso e o exílio algarvio a que os dirigentes do benfica o sujeitaram para o esconderem do assédio sportinguista. fc porto e belenenses foram outros dos interessados no concurso da pérola moçambicana, que chegou a lisboa a 17 de dezembro de 1960 e apenas se estreou, num jogo particular, a 25 de maio do ano seguinte.
com a ‘sorte’ que teimou a acompanhá-lo ao longo de uma carreira profissional que terminou com 733 golos em 745 jogos, eusébio vestiu pela primeira vez a camisola das ‘águias’ num particular frente ao atlético que terminou com uma vitória benfiquista por 4-2 abrilhantada por três golos do estreante.
decorriam as últimas semanas da época 1960/61 e, impedido de seguir com a equipa principal para berna, onde o clube viria a derrotar o barcelona por 3-2 para erguer a taça dos campeões europeus, eusébio fez parte do ‘onze’ secundário que foi afastado da taça de portugal pelo vitória de setúbal. na derrota por 4-1, o jovem reforço marcou o único golo ‘encarnado’ na sua primeira partida oficial. na semana seguinte haveria ainda tempo para a estreia no campeonato, na última jornada frente ao belenenses. eusébio deixou a sua marca no primeiro de 11 títulos nacionais que viria a conquistar de águia ao peito com um golo na vitória por 4-0.
pelé da europa
pouco depois seguiu-se a primeira aparição em palcos internacionais: o benfica apurara-se para a final do prestigiado torneio de paris, graças a uma vitória por 3-2 frente ao anderlecht que contou com um golo de eusébio. do outro lado estava o santos de pelé, a principal atracção para o público que enchia o estádio.
na primeira parte do encontro, o campeão brasileiro confirmava o favoritismo adiantando-se no marcador até aos 4-0. “eu entrei nessa altura a substituir o santana. logo no início da segunda parte o santos faz o 5-0. nem sabia de que terra era. mas fui-me acalmando e a verdade é que meti três golos num instante. nunca mais posso esquecer o público do parque dos príncipes, de pé, gritando pelo meu nome”, recordou eusébio muitos anos depois.
pelé fixou o resultado do jogo em 6-3 a favor do santos com o seu segundo golo, mas no dia seguinte a imprensa francesa destacava o aparecimento do “pelé da europa”. a france football chamou mesmo à capa o duelo entre os dois ‘astros’, titulando o resultado “eusébio 3 vs pelé 2”.
seguiu-se a primeira época inteira ao serviço do benfica, inicialmente marcada pela chamada à selecção nacional – estreou-se com um golo na surpreendente derrota por 4-2 frente ao luxemburgo – e pela primeira lesão no joelho. foi a 17 de dezembro de 1961, exactamente um ano depois de ter aterrado em lisboa, que no rescaldo de uma derrota frente ao fc porto, eusébio foi sujeito à primeira das seis operações ao joelho esquerdo que realizou ao longo da carreira. “cheguei a pensar que, mais tarde ou mais cedo, acabariam por me cortar a perna”.
não foram só os adversários a abusar do menisco de eusébio. a sua importância e estatuto também serviram para agravar uma lesão que o acompanhou muito para além da reforma. numa época em que o benfica se incluía entre os principais clubes da europa e do mundo, todos os anos chegavam à luz convites para a participação em jogos particulares. tal como hoje o barcelona e real madrid ganham mais dinheiro se levarem messi e ronaldo nas suas digressões, o prémio de jogo atribuído aos ‘encarnados’ também dependia da presença de eusébio.
e por vezes foi necessário ‘enganar’ as dores no joelho, através das inúmeras infiltrações a que se sujeitou ao longo da carreira, para que o clube lisboeta lucrasse ao máximo com a popularidade do seu melhor jogador. o torneio de buenos aires em 1968 é um exemplo repetido por vários ex-colegas, mas os sacrifícios também foram feitos ao serviço da selecção, como foi o caso da derrota frente à bélgica no apuramento para o europeu de 1972, que eusébio apelidou como “o pior jogo” da sua vida.
esforços que levaram às sucessivas intervenções no joelho esquerdo – após o final da carreira foi também operado ao direito –, que custaram “muitos, muitos golos”. dizia o homem que venceu a bola de prata – troféu atribuído ao melhor marcador da liga portuguesa – sucessivamente entre 1964 e 1968 e repetiu o feito em 1970 e 1973 para totalizar sete, que ainda hoje é um recorde em portugal. “na segunda vez fui operado na primeira volta, só joguei na segunda, mas bastou para continuar a ser o melhor marcador”, recordou o também vencedor da primeira bota de prata da história, em 1968. o feito de ser o melhor marcador da europa foi repetido cinco anos mais tarde.
a glória europeia
e se em portugal se tornou rapidamente uma figura maior, no estrangeiro também não demorou muito. lesionado em dezembro de 61, eusébio não conseguiu evitar que em 62 o título nacional fugisse para o sporting mas voltou a tempo de ajudar o benfica a alcançar a segunda taça dos campeões europeus. e logo num jogo épico frente ao real madrid de puskas e di stéfano, com o ‘rei’ a marcar por duas vezes na resposta benfiquista a um hat-trick do húngaro.
com apenas 20 anos, eusébio acabava a época a ser considerado o segundo melhor jogador da europa – a bola de ouro foi nesse ano para josef masopust, o obreiro da caminhada checoslovaca até à final do mundial frente ao brasil de pelé – mas após a final da taça dos campeões mostrava os primeiros sinais de uma humildade que seria reconhecida internacionalmente. foi ele, vencedor, que se dirigiu a di stéfano, que sempre considerou como o melhor de todos os tempos, para questionar o astro nascido na argentina sobre o regime alimentar que lhe permitia jogar ao mais alto nível com 36 anos.
a consagração da bola de ouro chegou apenas três anos mais tarde, em 1965, quando a estrela benfiquista já era conhecida na europa como pantera negra, alcunha que terá tido origem no seleccionador inglês walter winterbottom, ao referir-se assim ao jogador português que mais temia num jogo de qualificação para o mundial de 1962. e acabou celebrizada pelo jornalista desmond hackett, do daily mail, após a final frente ao real madrid.
pelo meio somaram-se mais duas finais europeias, perdidas para equipas de milão. em 1963, eusébio adiantou o benfica em wembley, mas foi lesionado por giovanni trapattoni e os ‘encarnados’ perderam 2-1; dois anos mais tarde, numa final disputada em milão, o inter superiorizou-se por 1-0.
um homem inacreditável
na terceira final perdida deu-se um episódio que, repetido na imprensa mundial, consolidou a imagem de eusébio no exterior, não só como futebolista de eleição mas também como um “homem extraordinário”, como disse agora à bbc paddy crerand, então jogador do manchester united.
após o benfica empatar o encontro a uma bola ao minuto 79, eusébio teve duas oportunidades daquelas que não costumava falhar mas em ambas o golo foi negado pelo guarda-redes alex stepney. à segunda, o português foi cumprimentar o adversário pela brilhante defesa: “no momento nem percebi, com o calor do jogo, mas é um gesto que mostra o tipo de pessoa que era. falámos muitas vezes do assunto e o homem era simplesmente inacreditável. jogar contra ele foi uma honra”, declarou stepney, cuja equipa aproveitaria o prolongamento para bater as ‘águias’ por 4-1.
para a sua grande popularidade em solo britânico contribuiu também aquela que ainda hoje é a melhor prestação portuguesa na história dos mundiais. em 1966, a selecção nacional caiu nas meias-finais frente a inglaterra e ficou célebre a imagem de eusébio a chorar agarrado à camisola das quinas. numa sociedade muito menos mediatizada do que a de hoje, foram as exibições de eusébio numa competição transmitida para todo o mundo que o confirmaram como um dos grandes da modalidade.
os seus nove golos ajudaram portugal a afastar o bicampeão brasil de pelé na fase de grupos, a recuperar de uma desvantagem de 3-0 perante a coreia do norte (marcou quatro) e a garantir o lugar no pódio no jogo final frente à união soviética.
património nacional
a fama adquirida despertou o interesse de alguns gigantes europeus, nomeadamente numa liga italiana que atraía então as maiores vedetas do momento. eusébio foi seduzido por propostas milionárias de juventus e inter de milão e as transferências só terão sido mesmo travadas por salazar, com o ditador português a decretar o ‘rei’ como ‘património nacional’.
a saída deu-se apenas em 1975, um ano depois da revolução de abril e após uma época com apenas nove jogos realizados no benfica. após 473 golos em 440 jogos oficiais pelas ‘águias’, o destino foi a liga norte-americana, onde eusébio representou cinco equipas até 1978, tendo sido campeão pelos toronto blizzard em 1976. aproveitando os diferentes calendários da américa do norte e da europa, regressou a portugal duas vezes para representar o beira-mar e o união de tomar.
depois disso tornou-se um embaixador do benfica e da selecção nacional e não deixou de influenciar a vida do seu clube quando o considerou necessário. foi o caso do apoio declarado a manuel vilarinho na véspera de umas eleições que caminhavam para a reeleição de vale e azevedo, que levou o então presidente a ameaçar colocar a estátua do ‘rei’, instalada no exterior do estádio da luz em 1992, na garagem.
azevedo cairia em desgraça e eusébio manteria o estatuto entre os benfiquistas. tal como na selecção, que deixou de representar em 1973 com um saldo de 41 golos em 64 jogos. um recorde que durou até 2005 e que até agora foi apenas ultrapassado pelos 47 golos de pauleta e de cristiano ronaldo. mas se o açoriano acabou a carreira internacional com 88 jogos com a camisola portuguesa, o madeirense já leva 109.
após o hat-trick de ronaldo frente à suécia, intensificou-se o debate sobre a possibilidade de a actual estrela do real madrid ultrapassar eusébio e tornar-se o melhor jogador português de sempre. “é um erro. não há comparação. agora é mais fácil jogar com as outras equipas. eu nunca joguei com liechtenstein, nunca joguei com o azerbaijão. é triste. fico triste, porque não se pode fazer essa comparação”, lamentou eusébio em setembro. mas a estrela do real madrid foi rápida em deixar o seu ídolo descansado: “os recordes são para serem batidos, mas o eusébio que fique tranquilo porque ele sempre vai estar sempre lá em cima, no topo. ele será sempre o eusébio”.
