a casinha é uma casa que pretende construir outras, uma família. é a memória da casa da avó, de uma avó.
tem soalho, duas salas luminosas com mesas postas — com aprumo — sobre toalhas de pano, cadeiras de madeira trabalhada, cómodas e armários cobertos com naperões e enfeitados com jarras de flores, plantas, peças de loiça e santos. tem sofás, livros, quadros, fotografias de família e uma gaiola com dois canários.
cada detalhe tem uma função, explica à lusa a socióloga fátima correia, de 57 anos, mentora do projecto.
“nada é por acaso ou para enfeitar, faz parte do projeto, é para tocar as sensibilidades das memórias. muitas das pessoas que vêm aqui estão desagregadas da parte familiar. chegam e dizem: ‘ah, a minha avó tinha este móvel, tinha este copo!’. e, sem estarmos a pressionar, estamos a suscitar lembranças, a fazê-los ir buscar algum laço que ainda possa existir”, diz.
o primeiro andar direito do número 3 da rua nova do desterro, entre o intendente e o martim moniz, tem também a porta a aberta a todos: aos que vêm para comer, conversar ou pedir outro tipo de ajuda, mas também aos que vêm jantar e lanchar e deixam donativos, para que o trabalho possa continuar.
durante a semana, aos jantares, a associação cozinha para grupos e para famílias (ou cede-lhes o espaço para que eles cozinhem) e, aos sábados à tarde, a casinha transforma-se num salão de chá, com bolos caseiros e scones.
os donativos que recebe com essas actividades — que “atraem gente das letras e do cinema”, disse a responsável — financiam o trabalho social, que já chega, todos os dias, a cerca de 150 pessoas, entre as que estão “fidelizadas” (cerca de 80), as que aparecem de forma irregular e as que vão à associação buscar comida que levam para casa.
fátima correia admite que o sucesso do projecto neste primeiro ano “ultrapassou em 200%” as suas expectativas, mas consegue justificá-lo: “a abordagem que fazemos aqui é muito simples – poucas perguntas. assim saímos do ritmo que é normal nas instituições. eu não quero ouvir mentiras, por isso pergunto o nome e a idade. o resto é no dia-a-dia que vamos conquistando”.
todo o trabalho é feito por uma equipa de seis pessoas, incluindo a coordenadora, e dois dos elementos da equipa — os mais jovens — são já produto do trabalho que a casinha desenvolveu este ano.
duarte lemos e pedro leitão, ambos de 28 anos, entraram aqui para pedir ajuda. começaram por sentar-se à mesa, entretanto saíram da rua e são agora “os braços e as pernas” de fátima correia. um é responsável de sala, o outro ajudante de cozinha.
filomena galizes, de 63 anos, está desempregada e é voluntária na associação, a cara atrás do balcão onde se serve o café. diz que esta experiência a tem feito crescer e que sente mudanças no comportamento dos seus ‘habitués’: “agora chegam, cumprimentam, deixam sua rebeldia lá fora. passaram a estar mais comedidos aqui dentro, há um cuidado. se acontece alguma coisa, pedem desculpa”, conta.
fátima correia sublinha que é falso que as pessoas não queiram sair da rua, considerando que o problema é antes haver “demasiada burocracia” e “falta de respostas”.
esta semana, contou, a associação conseguiu tirar da rua um casal. tem outras 20 pessoas à espera de uma reposta que, neste momento, não tem recursos para oferecer.
por isso, a casinha vai pedir financiamento para pôr a funcionar uma rede de apoio domiciliário “com uma dinâmica diferente”, com a ajuda dos utentes da associação. a ideia é fazer com que os que de entre eles são profissionais nas áreas das necessidades encontradas — “arranjar uma janelinha, arranhar uma porta, uma pintura”, enumerou a coordenadora — retribuam, com ajuda a outros, a ajuda que recebem.
lusa/sol