quem, fora de lisboa, viu os telejornais nacionais entre o natal e o fim-de-ano, ficou feliz por não viver na capital. e até incorporou o tema desta greve em algumas conversas. circulando circunstancialmente no carro de um amigo, no grande porto (onde toda a gente chama almeidas aos funcionários municiais da limpeza), fomos forçados, numa rua estreita, a seguir durante alguns metros atrás de um camião do lixo que estava a fazer recolhas.
no carro, por sinal um desses carrões ditos suv de sete lugares, seguia, ao lado do avô, pai do meu amigo, uma criança que revela uma assinalável curiosidade, própria de algumas crianças quando descobrem, nos primeiros anos de escola, o deslumbramento do conhecimento, e o diálogo que ela desencadeou – a propósito do breve retardamento na marcha que a recolha do lixo provocou – ficou gravado em todos os que o testemunharam.
– ainda bem que a gente não vive em lisboa, avô.
— por que dizes isso?
– não sabes? em lisboa não apanham o lixo. não viste na televisão?
— não, não é assim, em lisboa, os senhores que fazem a limpeza estão em greve.
— greve? o que é greve, avô?
— greve é decidir não trabalhar para que outras pessoas vejam como o nosso trabalho é necessário e importante.
– tu também fazes greve, avô?
neste entretanto, o camião do lixo arrancou e tivemos um pretexto para desviar o tema da conversa. «já vamos arrancar», disse o condutor e pai da criança que não é, infelizmente, daquelas que desarmam à primeira, e que nem esperou pela resposta do avô para acrescentar um contundente «em lisboa, os homens do lixo já fizeram greve no s. joão».
quase em uníssono, dissemos que lisboa não tem s. joão, mas a criança não cedeu à suposta autoridade dos adultos e disse-nos, naquele tom que não admite réplicas, que têm sim senhor, têm o s. joão deles, e no s. joão deles os homens do lixo já tinham feito greve. avô, pai e até eu começávamos a sentir o desconforto pelo rumo que a conversa estava a levar. eu nem me lembrava dessa suposta greve dos serviços de limpeza durante as festas de lisboa.
greve é sempre um tema delicado, em especial num sector como o das limpezas. ninguém sonha ser ‘almeida’ e, se os homens da limpeza entram em greve, a delicadeza do tema cresce, mesmo que pareça que os direitos pelos quais fazem greve estão salvaguardados, independentemente do serviço ser da responsabilidade da câmara ou das juntas de freguesia.
o que não parece justo é que haja tanta gente e de tantos quadrantes políticos interessada em atribuir a responsabilidade desta greve e dos efeitos que ela gera ao presidente da câmara municipal de lisboa. a menos que haja estratégias ocultas e que a paragem também sirva para atirar o lixo para os nossos passos, como quem atira areia aos nossos olhos.
*presidente da apemip, assina esta coluna semanalmente