Teatro: Shakespeare na floresta

Comédia pastoril de amor e costumes, Como Queiram, de Shakespeare, encenada por Beatriz Batarda, leva ao São Luiz um elenco de luxo: o cineasta Marco Martins junta-se a actores como Nuno Lopes, Carla Maciel, Luísa Cruz, Rui Mendes e Bruno Nogueira.

numa sociedade corrompida por um poder conquistado de forma desonesta, que não representa os seus cidadãos, o que fazer para fugir ao tirano que governa? exilar-se na floresta, onde se pode criar a própria estrutura e se libertar do regime opressor. essa floresta foi já cenário e recurso narrativo de um sem número de dramaturgos mas talvez ninguém o tenha usado tão bem como shakespeare. é dele como queiram, a peça que se estreia hoje, terça-feira, 14, no teatro são luiz, em lisboa, encenada por beatriz batarda (a cujo ensaio aberto à imprensa o sol assistiu, uma semana antes da sua estreia). no palco do chiado até 26 de janeiro, como queiram parte depois para viseu (7 de fevereiro), porto (de 14 a 23 de fevereiro), guimarães (1 de março) e braga (7 de março).

com uma excelente tradução de daniel jonas, figurinos de josé antónio tenente, música de pedro moreira e um elenco de luxo, com nuno lopes e carla maciel nos principais papéis, a que se juntam luísa cruz (extraordinária na sua interpretação de tocaspartes), rui mendes, bruno nogueira, romeu costa, sérgio praia, sara carinhas, leonor salgueiro e o estreante em palco como actor marco martins, a peça promete não deixar ninguém indiferente: é um conjunto de solistas que aqui harmonizam vozes num trabalho conjunto.

triângulos amorosos

comédia de costumes, este como queiram é um verdadeiro novelo: o duque frederico (marco martins) usurpou o poder do irmão, o duque sénior (rui mendes), que se exilou na floresta, deixando a sua filha, rosalinda (carla maciel), à guarda do tio tirano, fazendo companhia à filha deste, célia (sara carinhas). é quando rosalinda se apaixona pelo bravo orlando (nuno lopes), filho do melhor amigo do duque exilado, que o tio a expulsa da corte. rosalinda foge para a floresta de arden com a prima, onde se dedicam aos pastoreio disfarçadas de um casal de irmãos, fazendo-se rosalinda passar por homem. entretanto, também exilado na floresta e a suspirar por rosalinda está orlando, que não sabe que o seu amigo ganimedes é, na verdade, a sua amada. a este lote juntam-se outros fugitivos, apoiantes do duque sénior, também eles enredados em pares e triângulos amorosos e vários enganos.

curiosamente, esta encenação de beatriz batarda de como queiram segue-se à de álvaro correia que, há menos de um ano, esteve em cena no teatro nacional d. maria ii, marcando a estreia da peça em palcos portugueses (é, porém, uma das comédias de shakespeare mais representadas no mundo). a ideia para a fazer, diz no entanto a encenadora, é anterior. há três anos o grupo cassefaz quis produzir uma série de clássicos e lançou a beatriz batarda o desafio de encenar shakespeare, em co-produção com o tndmii, na altura sob a direcção de diogo infante. «pensou-se em macbeth mas não me sentia preparada para o fazer, sentia pudor em agarrar numa tragédia. perante o desenho da crise que se avizinhava, ainda pouco presente na vida quotidiana mas já muito presente no discurso político e económico, pareceu-me que esta peça seria a mais indicada para explorar», explica a encenadora, acrescentando: «o texto fala-nos de uma sociedade que rebenta porque são as pessoas que estão a servir a estrutura. e, por frustração, escolha ou imposição, abandonam a corte e vão para a floresta, onde as personagens reencontram a sua verdadeira essência e onde têm oportunidade de reformular as prioridades e as necessidades para voltarem a formar uma nova sociedade, uma estrutura que sirva as pessoas e não o inverso. daí fazer-se uma alegoria ao 25 de abril, que para a minha geração, e para as gerações depois da minha (nasci em 1974), começa a ficar no universo das lendas e dos mitos, não estando tão vivo quanto poderia estar». foram precisos três anos para concretizar o projecto devido a financiamentos que não chegaram, questões pessoais, e redução nos apoios da dgartes, que deixou de fora os cassefaz. o são luiz acabou por se tornar o co-produtor que faltava.

com um palco despojado, aberto, sem fronteiras claras, e onde muitas vezes se vêem, como num espelho, os actores como espectadores da própria peça, a encenadora quis criar uma comunhão com o público (como diz a certa altura jaques, ‘todo o mundo é um palco onde homens e mulheres são actores, cada um com o seu papel’) e um diálogo próximo com o espectador. «antes que venha o divórcio», avisa. «quando comecei a trabalhar não havia muita gente a vir ao teatro, estava a renascer um teatro novo. entre o final dos anos 80 e início dos 90, houve um momento de afastamento entre o público e o teatro. e nos últimos 20 anos tem havido um crescendo de reconciliação, entre o teatro e o grande público. cabe-nos a nós garantir que não se perca o que foi conseguido pelas pessoas que trabalharam no teatro nos últimos anos. a minha geração não devia tomar por garantido que essa aproximação irá durar», conclui.

shakespeare em dose dupla

a estreia da peça acontece no início de 2014, ano em que se assinalam os 450 anos do nascimento de shakespeare, uma «coincidência». como coincidente é a data de estreia com a de coriolano, tragédia do dramaturgo que, encenada por nuno cardoso (que assinou já a encenação de ricardo ii e medida por medida), está desde ontem no palco do tndmii (e que também ela versa sobre um tirano que se apodera de uma cidade e que, posteriormente, se exila na floresta, depois de a cidade o rejeitar), protagonizada por albano jerónimo e ana bustorff. em ano de celebração, muito mais há-de estrear de shakespeare. uma boa oportunidade para ver novas visões sobre a obra daquele que é considerado um dos grandes dramaturgos de todos os tempos.

rita.s.freire@sol.pt