só na morte
é difícil perceber o talento português e não só para o elogio na hora da morte. sabemos que convive com a indiferença em vida. ou com a intolerância radical. mas uma vez desaparecidos, parecemos não querer largar aqueles que deixaram de estar ali para serem devidamente ignorados ou criticados. vimo-lo de novo com eusébio, um dos nossos maiores atletas e pessoa tão afável. duvido que o país o tenha estimado em vida de acordo com o que merecia e com o que deu à sua pátria, sim, portugal. no dia em que morreu, foi comparado nas televisões a nelson mandela. isto foi à tarde. à noite, com mais conversa, ainda chegava a martin luther king. não chegou, mas as lágrimas na sua morte não bastam para compensar a gratidão que eusébio devia ter experimentado em vida. o fenómeno talvez resulte de uma resistência a amar e ser amado. vejo estas homenagens também como uma expressão de culpa neurótica por não termos mostrado mais quando estava entre nós.
disparates que distraem
correu o boato de que kim jong-un executara o tio de uma forma especialmente cruel, atirando-o às mandíbulas de 120 cães. porém, a história não foi confirmada, nem pelos jornais sensacionalistas da coreia do sul. a ideia que temos da coreia do norte permite-nos no entanto acreditar que isto é possível. a coreia do norte é o mais parecido que temos com a memória do planeta mongo e do seu líder, o impiedoso imperador ming, nas aventuras de flash gordon. mas penso que nos devemos controlar. o mal, que é mau em si, não precisa de ser pior para ser condenado. os exageros levam a que se ridicularize a crueldade e a arbitrariedade dos tiranos e dos seus executores. o ridículo faz-nos sorrir. e o só facto de sorrirmos distancia-nos dos pesadelos que se vivem por tantas zonas do globo. os 120 cães de kim jong-un podem não ser verdadeiros, mas também podem ser uma possibilidade com o objectivo de espalhar o terror. são, acima de tudo, uma distracção.
grandolada
foi com surpresa que soube do resultado da eleição da ‘palavra do ano’, uma iniciativa da porto editora. a palavra eleita pelos cibernautas entre várias, como ‘grandolada’ ou ‘irrevogável’, foi ‘bombeiro’. gostaria de manifestar o meu desagrado com a escolha. entendo que se trate de uma homenagem aos bombeiros na sua luta injusta contra fogos evitáveis. mas havia uma palavra melhor na lista. falo precisamente de ‘grandolada’, um neologismo que define o acto de se manifestar contra o governo cantando o célebre ‘grândola, vila morena’. admito que gosto mais da palavra do que do acto, até porque assistimos a assassínios do tema. recordo, sem saudade, o desafinanço de miguel relvas, a querer acompanhar ‘a malta’. mas ‘grandolada’ é uma delícia. ainda para mais numa língua que resiste a neologismos. em grego, teria sido declinada em todos os casos. em inglês, faria já parte do oxford dictionary. por cá, não ligamos ao que é só muito divertido.
porque
do outro lado do atlântico, a american dialect society reuniu em minneapolis e escolheu ‘because’, um simples ‘porque’, como neologismo do ano. em segundo lugar ficou outra palavra singela, ‘slash’, ou ‘barra’, aquele traço na diagonal. as explicações para a escolha são fascinantes. ‘because’ foi escolhida porque passou a ter outra função na frase, nomeadamente a de introduzir um substantivo ou um adjectivo. por exemplo, digo que engordei, ‘because christmas’, e fica esclarecido. estou atrasada, ‘because reasons’ e não se fala mais nisso. ‘slash’ também tem uma função economizadora na conversa e substitui o mais palavroso ‘and/or’. na verdade, não dá a possibilidade de ‘or’ (ou). no nyt, o exemplo dado é ‘come and visit slash stay’, o que me parece suficiente. estamos a falar do clássico ‘actor-slash-model’, em português ‘actor-barra-modelo’. aconselho a deixar estas eleições para os especialistas. os falantes não percebem nada do assunto.