Catarina Furtado: ‘Nunca fui de pisar o risco’

Aos 41 anos e com dois filhos, Catarina Furtado já não é a namoradinha de Portugal. Apesar de mal saber estrelar um ovo, actualmente apresenta Chefs’ Academy, na RTP. Mas a embaixadora das Nações Unidas desde 2001 está cada vez mais dividida entre o trabalho em televisão e as missões humanitárias. Sobretudo desde que, há…

acaba de ser apresentada a campanha continuamos à espera, na qual a sua associação, a corações com coroa, participa. qual o objectivo?

é uma campanha sobre a discriminação e as desigualdades que continuam a existir no mundo, nomeadamente ao nível da saúde sexual e reprodutiva, da justiça social e da igualdade de género e oportunidades. as meninas e as mulheres são sempre as maiores vítimas! realidades como as dos casamentos precoces, a mutilação genital feminina e as mortes evitáveis por causas relacionadas com a gravidez e parto – há 800 mulheres a morrer por dia – têm de estar nas nossas prioridades. queremos informar e agir em torno da agenda de desenvolvimento pós-2015 e, por isso, estamos a apelar a que haja um compromisso sério e com consequências práticas dos governos, dos parlamentares, das associações não-governamentais, das escolas e da população em geral. o primeiro passo é fazer com que o vídeo de sensibilização se torne viral.

desiludiu-se com a classe política?

sim, tive muitas desilusões ao nível político. quando comecei era muito mais ingénua e achava que seria mais fácil mobilizar vontades. a verdade é que os políticos são os mais difíceis de mobilizar. mas, tal como ensino aos meus filhos, quando se promete, cumpre-se. sou uma séria trabalhadora voluntária e ganhei, fruto da idade e da experiência, uma certa confiança para dizer o que penso. os políticos não têm a experiência do terreno, a noção das reais necessidades das pessoas.

durante muito tempo havia a ideia de ser sempre politicamente correcta.

ainda sou. tenho de ter jogo de cintura e portanto continuo a trabalhar nessa área do politicamente correcto. hoje em dia digo mais aquilo que penso. tenho menos medo. às vezes, sou irascível.

nunca lhe apetece ‘partir a loiça’?

não é eficaz. quando vou a estes países normalmente sou convidada para encontros oficiais e digo sempre as coisas. mas é preciso ter humildade e a capacidade de entender que não é o nosso país. digo tudo, mas com a minha maneira de ser: com alguma doçura. a minha irritação nunca chega ao ponto de inviabilizar a solução. muitas vezes, a pessoa vai para um nível de histeria que os outros já não estão a ouvir e a credibilidade da própria fica de rastos. sou uma diplomata sem passaporte.

foi diplomata mesmo quando começou a colaborar com as nações unidas e lhe apontavam o dedo: ‘esta quer ser a angelina jolie portuguesa’?

no início senti imenso isso. lembro-me perfeitamente que, quando conheci a angelina jolie, detive-me muito tempo a ouvi-la, a observá-la, a percebê-la… e a verdade é que o compromisso dela é absolutamente genuíno. isso deu-me força para, quando ouvi determinados ecos menos simpáticos, os deixasse num cantinho da inutilidade. o que posso fazer não se compara com o que a angelina pode fazer. mas inspirou-me. e a verdade também é que, a partir de certa altura nas nossas vidas, quando temos a consciência tranquila, a opinião dos outros começa a contar muito pouco. sobretudo a opinião dos que estão contra nós. sei que isto pode parecer arrogante, mas hoje em dia as críticas passam-me completamente ao lado.

se não tivesse recebido o convite das nações unidas, nunca teria abraçado estes desafios ligados à solidariedade?

não tenho dúvidas de que seria voluntária em algumas associações. o meu olhar atento para os outros vem dos meus pais – sobretudo da minha mãe, que foi professora mais de 20 anos na crinabel, uma escola de ensino especial. tinha nove anos quando ia tomar conta dos jovens da crinabel nas idas à praia. mas foi a visita ao terreno que me fez perceber que a minha missão para o resto da vida estará sempre ao serviço da causa feminina.

depois de tantos anos ligada às nações unidas, por que decidiu criar a sua própria instituição?

por vários motivos. tenho estado a trabalhar sempre em países em desenvolvimento, mas as desigualdades, ainda que com contornos diferentes, manifestam-se também em países desenvolvidos. e, ainda que de forma dissimulada, em portugal. achei que fazia sentido trabalhar estes assuntos no meu país. em portugal, com as mesmas posições, homens e mulheres ganham ordenados diferentes. as mulheres têm de provar o dobro. são desigualdades diferentes das de países em que uma menina de 15 anos não pode ir à escola e é forçada a casar com um senhor de 60 anos, mas são desigualdades.

foi uma ideia que demorou muito tempo a ser concretizada?

não. sou pouco dada a fazer projectos a longo prazo no sentido em que vivo muito intensamente cada dia. não sou nada de pensar onde estarei daqui a dois anos. talvez tenha a ver com o medo que tenho da morte ainda não estar resolvido. tenho uma relação dramática com a morte e acho sempre que devo aproveitar ao máximo.

não deixa de ser curioso se pensarmos que, em missão, encara a morte com frequência. é uma espécie de teste?

não. já me apaziguei, não em relação à morte, mas no sentido de saber que não vou resolver isto. perder as pessoas que amo é um medo que tenho, tal como acho uma injustiça termos de morrer. tento não pensar nisso. e, quando me confronto com a morte, o que vem daí é um reforço. e é preciso fazer um parêntesis: a maior parte das mortes a que assisto são evitáveis. são em países em desenvolvimento onde não existem coisas básicas que fazem a diferença entre a vida e a morte, como um mero soro. isso faz com que utilize a violência de assistir a uma morte para ter força para fazer mais.

esteve em moçambique, onde filmou um documentário que continua por exibir na rtp. o que se passa?

fiz um documentário na gorongosa a convite da equipa que trabalha para a national geographic e do próprio greg carr, que, há cerca de oito anos, doou parte do seu dinheiro para a recuperação do parque nacional. trabalhei com a equipa do bob toole, o realizador mais premiado na cinematografia da vida selvagem, e a rtp não gastou um tostão pois a equipa ofereceu o documentário. mas é um documentário com o objectivo de mostrar que a gorongosa é um destino de turismo. a rtp decidiu guardar o documentário porque não vamos dizer que está tudo uma maravilha quando existe um conflito que pode tornar uma viagem mais complicada.

moçambique e guiné são os carimbos mais repetidos no seu passaporte?

e são tomé e cabo verde. mas a guiné é o que repito mais porque, paralelamente aos príncipes do nada [série documental gravada nas missões como embaixadora da onu] ainda no tempo do joão gomes cravinho enquanto secretário de estado da cooperação, com a rtp, o mne, o instituto camões e o fundo das nações unidas para a população, fizemos um protocolo para a aplicação do dinheiro de uma campanha que foi feita no dança comigo – 500 mil euros. foi uma intervenção em três localidades. em gabu, por exemplo, construímos um bloco operatório. antes da construção, filmei o primeiro documentário lá e foi quando vi mais pessoas morrer, mulheres a serem evacuadas em táxis durante 5 ou 6 horas até bissau e a morrerem com os bebés na barriga. quando olhamos para as estatísticas, os próprios médicos de lá apontam para as mulheres que fizeram cesarianas e dizem: ‘antes do bloco estas mulheres e os bebés teriam morrido’. isso é maravilhoso.

há pouco disse que as críticas lhe passam ao lado. também lhe passa ao lado quando questionam como pode defender os pobrezinhos e ganhar o que ganha na rtp?

o que é que uma coisa tem a ver com a outra? primeiro, os salários que dizem que tenho – e já falaram em vários números – não são os correctos. jamais falarei do meu contrato ou dos meus honorários. ninguém tem de saber o que ganho. mas ainda bem que sou remunerada segundo aquilo que os meus patrões entendem que tem a ver com o que produzo de valor comercial. é isso que me permite ter algum conforto para fazer tudo o resto.

no momento que o país atravessa as pessoas estão mais sensibilizadas para os ordenados nas instituições públicas…

e quem ganha o triplo ou o quádruplo e nada faz?

mas nunca foi tratada de forma menos simpática na rua?

a rtp está debaixo de fogo há muito tempo. foi, de uma forma quase estratégica, eleita como a grande culpada da crise – que é uma coisa demagógica. a dívida que existe não é só das entidades públicas, é também de muitas entidades privadas. mas acho que a relação conflituosa das pessoas com a rtp se está a apaziguar porque as pessoas já perceberam que não é bem assim. eu nunca senti nada. tenho uma relação muito simpática com o público. acho que também tem a ver com o facto de as pessoas me conhecerem desde os 19 anos. viram-me crescer no ecrã, viram-me ser mãe, viram-me chegar aos 40. há um sentimento de carinho e respeito mútuo.

como olha para a privatização da rtp?

não comento. só irei comentar quando não tiver nenhuma relação com a rtp. quando for independente poderei dar a minha opinião enquanto cidadã. porque tenho uma opinião.

numa entrevista passada disse que a rtp fazia sentido na sua vida…

o serviço público faz muito sentido na minha vida. para mim, faz sentido trabalhar em projectos numa casa que acredita que há uma fronteira – embora difícil de definir – entre o que se pode encaixar no serviço público e o que não se pode. é nesse lado do serviço público que me reconheço e que, mesmo que seja ingénuo da minha parte, imagino a minha carreira.

fascina-a um cargo na direcção a rtp?

agora está na moda, não é? não, não fascina.

não tem saudades dos grandes projectos?

não. gosto de usar, de vez em quando, uns vestidos compridos, e vou tendo umas galas. estou muito contente com a carreira que tenho tido. até hoje não me envergonho de nenhum trabalho, gosto do que faço e aceito cada trabalho retirando o que pode ser benéfico para mim enquanto apresentadora. acho engraçado agora, por exemplo, estar a apresentar um programa de cozinha.

quando não sabe cozinhar…

o projecto é mesmo para pessoas que não sabem cozinhar. a diferença é que eu não quero aprender e eles querem. acredito que terem-me escolhido tem a ver com dois motivos: não tinha nenhum programa e tenho este lado de acolher no colo os concorrentes, que é uma tradição minha.

hoje em dia sente que o seu trabalho humanitário se pode sobrepor à televisão?

não vivo do voluntariado e preciso de ser remunerada. e como não sou técnica, não encaro ter uma profissão nesta área. agora, sou capaz de, em televisão, me inclinar cada vez mais para os documentários. mas continuo a ter muito prazer em fazer programas que me desafiam. e o chefs’ academy desafia-me imenso porque nunca tinha feito nada nesta área. as pessoas encontram-me na rua e dizem-me: ‘oh menina, pensava que sabia cozinhar! então nem um ovo faz para o seu marido?’. dou beijinhos e digo que já sei fazer o ovo. mas fico a pensar que, de facto, ainda há muito a fazer em relação à igualdade. ninguém diz a um homem que ele não sabe fritar um ovo para a mulher.

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ainda lhe dá vontade de fazer xixi sempre que ouve ‘a gravar’?

dá [risos]. assim que se ligam as câmaras só penso que tenho de ir à casa de banho. sempre fui assim. quando era pequenina, os meus pais deixavam-me assistir ao fungagá da bicharada. houve um dia em que me levanto, vou ter com o júlio isidro em pleno directo, ele baixa-se e pergunta-me: ‘o que é minha querida?’. e eu respondo: ‘quero ir fazer xixi’. foi a minha primeira aparição em televisão. tinha uns quatro anos.

as recordações mais fortes que tem da infância estão relacionadas com o trabalho do seu pai, o jornalista joaquim furtado?

não. o meu pai trabalhava muito, noite e dia, em rádio e televisão, e, por isso, era mais ausente. as minhas recordações são muito dos meus avós e das férias grandes passadas com eles. são avós que já partiram todos e dos quais tenho muitas saudades. e lembro-me do meu lado traquinas. era muito destemida. tenho imensas marcas nos joelhos. era uma maria-rapaz.

ainda assim, numa entrevista disse que foi ‘rebelde a menos’ na adolescência. onde é que a maria-rapaz se perdeu?

não se perdeu. o meu exercício de ser maria-rapaz nunca foi no sentido da rebeldia prejudicial aos outros ou a mim própria. era destemida, mas nunca fui de pisar o risco. tenho uma imensa aversão à perda do controlo.

porque foi educada assim?

não. tenho uns pais altamente liberais. é feitio. é a minha maneira de estar. sou sensata. é algo que vem desde sempre.

a dança foi um empurrão da sua mãe?

foi pressão da minha mãe. eu era muito, muito tímida. aliás, ainda sou muito tímida, apesar de ter adquirido alguma confiança e ter aprendido a disfarçar. à minha mãe fazia impressão a má relação que eu tinha com o exterior. por exemplo, ir pedir um café ou pagar algo era um suplício para mim.

mas passava o dia no seu canto?

não. em miúda muito pequenina era a tal traquinas que falava com toda a gente. depois, a partir dos sete ou oito anos, passei a ser introvertida. foi nessa altura que a minha mãe fez um acordo comigo: tinha de ir fazer audição de piano e de dança do conservatório e, se ficasse, o compromisso era que tinha de frequentar uma semana. depois, se não gostasse, a minha mãe deixava-me desistir. entrei nos dois cursos, mas escolhi dança e, passada uma semana, estava rendida. mais do que à dança, estava rendida a um núcleo daquelas que, ainda hoje, são as minhas melhores amigas, o meu porto de abrigo. depois juntaram-se mais três ou quatro pessoas da televisão, mas o meu espólio afectivo é muito reduzido. a dança trouxe-me muitos momentos felizes, mas também alguns infelizes.

como assim?

na dança, para sermos mesmo boas, temos de sofrer muito e desde pequeninas. o rigor e a exigência não permitem vacilar. quando se tem nove anos falam connosco como se tivéssemos uma maturidade maior. lembro-me de um professor me puxar o carrapito para eu estar com as costas direitas e de as lágrimas me correrem pelo rosto.

o acidente que sofreu num ensaio foi, de uma forma perversa, libertador?

não. iluminou outros caminhos, criou novas rotas. mas foi muito violento. eu queria muito dançar. e, mais do que dançar, queria coreografar.

essa é uma mágoa que não se ultrapassa?

ultrapassamos, se tivermos capacidade de transformar essas perdas noutros amores… agarrei-me com toda a força ao curso de jornalismo. o meu luto fi-lo nessa mesma noite da lesão. ter de passar os movimentos que tinha criado e que ia dançar a uma amiga do coração, e depois sentar-me e vê-la interpretá-los, foi violentíssimo. e, na altura, ainda não sabia que ia mesmo deixar de dançar. o médico disse-me para parar e achava que, durante seis meses, ia fazer outra coisa e depois voltava à dança. mas depois apaixonei-me.

foi o seu pai que a levou para o cenjor?

não. o meu pai só soube quando fui escolhida. não queria que ele soubesse e não disse a ninguém de quem era filha, apesar de o apelido me denunciar. quem me sugeriu o cenjor foi o adelino gomes, mas ele não disse ao meu pai. eram várias eliminatórias e eu fui passando. durante o processo não disse a ninguém. quando contei, os meus pais ficaram muito surpreendidos, mas acharam que voltaria à dança. nunca ninguém acreditou que a minha vida seria esta. mas meti na cabeça que a minha vida seria o jornalismo.

terminado o cenjor esteve na rádio, a fazer jornalismo ‘puro e duro’. o que recorda dessa experiência?

foi uma aprendizagem interessante onde retive para sempre – e aplico hoje em dia ainda, por exemplo, nos programas príncipes do nada – a importância do rigor e da seriedade. na busca da verdade, na exaustão da procura e no compromisso com o público. os factos são os factos e o resto é folclore. mas também me lembro, pelo facto de ter apenas 19 anos, de me perder entre sonhos diferentes e navegar ora pelo mundo da dança, ora pelo mundo da representação, que se veio a confirmar mais tarde. a apresentação nunca foi um sonho. acabou por ser um desafio que a minha editora, a margarida pinto correia, me fez, convencendo-me a ir a um casting para o top+, da rtp. fui, fiquei e assim tudo começou. não conhecia o realizador, diamantino ferreira, mas depois disso acabámos por ficar amigos até hoje.

o que a fez trocar a rádio pela televisão?

durante uns tempos ainda conciliei a correio da manhã rádio (cmr) com o top+, mas depois a maria elisa, que esteve no início da sic, convidou-me para apresentar a mtv. achei um convite irrecusável e foi assim que entrei para os quadros da primeira estação privada em portugal. ainda fiz o curso de pivô, indicada pelo emídio rangel, numa tentativa de se perceber se iria continuar na área da programação ou passar para a informação, mas o entretenimento foi mais forte.

era muito jovem quando assumiu o chuva de estrelas. como foi passar da quase anónima para a ‘namoradinha de portugal’?

foi muito estranho, mas curiosamente muito natural. fui produzida, em termos visuais, para fazer um papel, mas a minha naturalidade estava lá. ou seja, ninguém me moldou para ser o que quer que fosse nem para seguir nenhum modelo. sem teleponto, fui seguindo a minha intuição e o meu genuíno interesse pelas pessoas e pela sua vontade de passarem pela vida e não deixarem que fosse apenas a vida a passar por elas. mas depois o boom foi tão grande e tão inesperado que o sucesso do programa e a novidade da apresentadora foram maiores que a minha própria ambição. por isso senti necessidade de continuar a aprender. foi aí que resolvi ir tirar o curso de representação em teatro e cinema para londres. propus ao dr. balsemão sair dos quadros porque não achava justo estar longe durante três anos lectivos. nunca hei-de esquecer a resposta dele: ‘não concordo. acho que deve ir na mesma, vai fazendo entrevistas aos actores, produtores e realizadores de cinema e envia para cá e a sic só terá a ganhar com a sua formação’.

portanto, a ida para londres foi fundamental para se reinventar como actriz, mas também para fugir ao mediatismo?

foi essencialmente para aprender e poder crescer sem que soubessem quem era e o que fazia. e para conhecer e explorar as minhas qualidades e as minhas limitações.

e onde anda a actriz catarina furtado?

anda bem. agora estou a fazer uma participação n’os filhos do rock, uma série imperdível da rtp. só não entrei em mais episódios porque infelizmente as datas das gravações da chefs’ academy não me permitiram. estou ansiosa por mais, mas não chego para tudo. sou mãe, mulher, apresentadora, embaixadora das nações unidas, presidente da corações com coroa… as mulheres têm de ser quase super mulheres. mas tenho vontade de trabalhar mais como actriz. quero voltar ao teatro.

sente que foi difícil ser aceite como actriz?

sim, mas é normal. as pessoas conheciam-me desde os 19 anos a apresentar. e no nosso país não há muito o hábito de ver pessoas que fazem tudo e mais alguma coisa. a resposta que eu posso dar é trabalhar. e depois surgem projectos, como a série cidade despida, que foi das coisas que mais gostei de fazer e foi a primeira vez em que olharam para mim como actriz.

disse que, nos testes para o cenjor, nunca revelou quem era o seu pai. hoje em dia, a catarina é a filha do joaquim furtado ou o joaquim furtado é o pai da catarina?

serei sempre a filha do joaquim furtado. e é assim que me sinto bem.

mas em nenhum momento se sentiu apontada como ‘a filha de’?

nunca senti directamente, embora saiba que possam existir pessoas que pensem que a minha entrada no mundo da televisão terá tido influência do meu pai. a verdade é que o meu pai soube sempre depois de as coisas acontecerem, exactamente pelo peso – com muito orgulho – de ser filha de quem sou. fiz questão de nunca dizer quem era o meu pai nos momentos decisivos: na entrada no cenjor, na ida para o estágio no cmr e no convite da sic. partilhei sempre com os meus pais quando os passos já estavam todos confirmados. uma das grandes lições que foi determinante para fazer o meu caminho e me ajudar a definir enquanto cidadã foi a enorme aversão que o meu pai tem às chamadas cunhas. entre muitas outras coisas, aprendi isto com ele – e também com a minha mãe.

é só entre a família e o tal ‘espólio emocional curto’ que deixa de ser a catarina politicamente correcta?

não. sou exactamente igual, faz parte do meu adn. o que tenho a dizer vou dizendo e já tomei posições complicadas, pelas quais fui criticada, como quando disse ser contra a penalização das mulheres que fazem um aborto. consigo sempre dizer aquilo que penso, mas sem criar uma barreira a partir da qual não seja possível trabalhar. o que evito é o conflito e o confronto, mas assumo as minhas posições. mais do que ser politicamente correcta acho que tenho jogo de cintura.

o que mudou com a maternidade?

quase tudo. a valorização do trabalho da minha mãe no seu exercício de mãe. e da pessoa que é e sempre foi. e um inesperado novo coração, que tanto tem de corajoso e quase imbatível, como de mais permeável à dor em relação aos meus tesouros – a maria beatriz e o joão maria – e à dor dos outros. depois de ter sido mãe, duas vezes, com todas as condições, medicamente assistida, nunca mais consegui deixar de pensar nas 800 mulheres que morrem por dia, em todo o mundo, por causas evitáveis associadas à gravidez e ao parto.

o que mudou com a chegada dos 40 anos?

os 40 não me passaram com leveza, mas hoje em dia não os sinto. a primeira coisa em que pensei é que tenho menos tempo para abraçar as coisas que ainda quero abraçar.

há uns anos, numa entrevista, quando lhe perguntaram se sentiria falta do reconhecimento público, disse para lhe perguntarem dali a uns anos. está preparada para ninguém virar a cabeça para a ver passar?

e então? se eu estiver feliz e os meus pais e os meus filhos tiverem saúde… hoje em dia as crianças pequeninas, que antes me reconheciam muito, reconhecem-me menos. o reconhecimento físico não é fundamental, só quero que as gerações que se lembrarem de mim digam que fiz sempre um trabalho sério e coerente.

olha muitas vezes para os programas que fez no passado?

não olhava. agora olho porque decidi ser facebookiana e, no meu facebook, ponho umas coisas antigas. mas não tenho nenhuma nostalgia.

e os seus filhos nunca pedem para ver esses programas antigos?

não. eles ainda nem perceberam muito bem que eu já sou conhecida há muito tempo.

quando olha para essas imagens antigas como é a relação com o passado?

muito apaziguada e nada saudosista. só é nostálgica de vez em quando porque há pessoas que ficaram pelo caminho e tenho muitas saudades. lá está… são sempre as pessoas e a incapacidade de lidar com a morte… as pessoas que nos deixam cá e ficam lá à nossa espera.

lá onde?

essa é uma boa pergunta.

ainda não encontrou a resposta?

tem de ser uma casa com uma porta. o meu filho pergunta-me sempre como vai ser lá em cima, se as casas têm portas e se pode levar os brinquedos com ele… e pergunta-me como é que os segura para não caírem todos cá para baixo.

e como é que a mãe que não sabe lidar com a morte responde a isso?

‘vai tudo correr bem’. é só o que lhe digo. digo que já está tudo planeado e definido, nós é que ainda não sabemos. e digo-lhe que os brinquedos não vão cair.

raquel.carrilho@sol.pt