Daniel Galera: ‘Este livro é como uma esponja’

Um jovem atleta de Porto Alegre, incapaz de reconhecer rostos, tem a vida desfeita: acaba de se separar da mulher, o pai suicidou-se, não fala com o irmão, mal se relaciona com a mãe. Decide então ir para Garopaba, vila costeira onde se conta que, décadas antes, o avô terá sido assassinado, esfaqueado num baile…

‘Barba Ensopada de Sangue’ parte da história de um homem que terá sido assassinado. Como surgiu?

Em 2008 fui viver em Garopaba. Quando cheguei me lembrei de uma história que o meu pai me contou quando eu era adolescente, da morte de uma pessoa em Garopaba que ele não tinha certeza se era real. Era uma história curiosa de que tinham apagado a luz e matado a pessoa. E ninguém sabia quem porque ele era odiado pela comunidade. Comecei a imaginar quem poderia ter sido e parti para uma história de ficção. Aí comecei a pensar noutras personagens, no protagonista, no pai, e tudo começou a se ramificar. É um livro longo, acabou como uma esponja, absorvendo uma série de outras histórias, personagens e preocupações filosóficas.

O livro mistura aspectos do thriller com a procura da identidade e ainda reflecte sobre mitos e lendas. Porquê?

A minha ideia era fazer uma combinação entre uma história de mistério, com elementos do policial, e um romance existencial, de uma personagem procurando o seu lugar no mundo, a sua identidade. Depois, vivendo em Garopaba, percebi que havia muitas superstições, lendas, histórias de fantasmas, coisas que a gente na cidade grande já não encontra. Imaginei a personagem do avô, Gaudério, como um homem que tinha adquirido na comunidade essa carga mítica e de superstição. Ele é como uma maldição. As pessoas não querem falar dele porque pode trazer má sorte e atribuem-lhe feitos impossíveis, como ficar dez minutos mergulhando ou voltar da morte para assassinar os que o mataram. Sempre pensei que histórias e personagens desse tipo, se a gente pudesse voltar atrás no tempo e ver quem eles de facto eram, seriam pessoas bastante comuns.

A família ocupa um lugar central no livro. O que lhe interessa no tema?

O livro trabalha a questão de que tipo de herança a gente herda da família e de qual é a importância de um núcleo familiar. Esta é uma personagem cuja família viva se está desmoronando: o pai se mata, tem uma relação ruim com a mãe, pior ainda com o irmão, com quem teve uma briga muito séria por causa da mulher. Por isso se apega à figura do avô. Vê nele a última chance de ter um vínculo familiar consistente na sua vida. 

O protagonista não reconhece rostos. Porque lhe deu essa doença?

É uma característica interessante para uma personagem por dar margem a uma série de situações e conflitos. Uma pessoa com esse problema pode não reconhecer alguém que é uma ameaça mas também alguém de quem gosta, ama ou por quem quer ser amada. E dialoga com o tema do romance, a questão da identidade, com a projecção que ele faz da imagem dele na figura desse avô misterioso. Resolvi mergulhar fundo nisso a ponto de transformar o próprio estilo da narrativa. A história é contada de forma tão atenta aos detalhes quanto a personagem tem que ser para conseguir manter suas relações sociais e se orientar no mundo.

Antes de ser publicado, o livro já tinha os direitos vendidos para vários países, até porque saiu um excerto na edição da Granta dedicada aos melhores jovens escritores brasileiros. Isso dá uma pressão maior?

Aumenta um pouco. Mas é uma questão de sobrevivência bloquear esse tipo de expectativas e não as deixar prejudicar o trabalho. Não se pode escrever para satisfazer a expectativa de um público, de venda ou de crítica.

rita.s.freire@sol.pt