Campo de Milles: O memorial dos artistas

Uma das imagens com mais impacto que se pode ver no Campo de Milles é uma fotografia antiga, a preto e branco, de uma multidão a fazer a saudação a Hitler. De um plano aberto onde as cabeças parecem alfinetes, a câmara foca um indivíduo em particular. Enquanto todos os outros levantam o braço, este…

Este não é um sítio comum e não retrata a História da forma a que estamos habituados. Por isso, pode suscitar reacções mais exaltadas. “Ontem esteve cá um grupo de historiadores e um deles gritou: ‘O que vocês dizem é ignorância!’. Referia-se à ideia de que as pessoas, de forma isolada, podem fazer alguma coisa contra um genocídio”, conta Alain Chouraqui, o director do memorial e da Fundação do Campo de Milles. Alain Choraqui reconhece que a mensagem que tentam passar é algo invulgar, mas garante que a maior parte das reacções têm sido positivas.

A imagem mais propagada da França na II Guerra Mundial é a da resistência francesa. Aqui conta-se o outro lado da história – o lado da França colaboracionista. Um capítulo que nem todos os franceses parecem querer relembrar, mas que está a ganhar cada vez mais força, seja por projectos como este, seja pelo aumento no número de investigações e publicações que tratam o tema.

Depois de comprar o bilhete, o visitante é encaminhado para uma sala de cinema. Todas as visitas começam pela visualização de um filme curto de introdução. O percurso continua, depois, por um itinerário histórico através da imprensa francesa da época, onde se destacam várias notícias de episódios que conduziram à guerra. Umas fizeram manchete ou destaque na primeira página; muitas outras tiveram pouco destaque. A notícia sobre a criação do primeiro campo de concentração, por exemplo, foi uma ‘breve’ de poucas linhas. Falava de “um campo de concentração para 5.000 pessoas […] um destino para comunistas, marxistas e opositores ao regime”.

O memorial do Campo de Milles, inaugurado em 2012, está organizado em três zonas com abordagens diferentes: histórica, museológica e reflexiva.

Após a imprensa da época, o visitante encontra a exibição de entrevistas a sobreviventes e a exposição de objectos da época.

Estamos no rés-do-chão. A maior parte dos internados movimentava-se nos andares superiores, onde ficavam os seus dormitórios. Neste piso apenas permaneciam os velhos, num quarto contíguo à morgue.

Os corredores são escuros e frios ainda hoje. Mesmo nos dias mais soalheiros, os muros escondem a luz do Sol, mantendo o interior soturno. Os passos ecoam pelos corredores vazios, ou melhor, pelos túneis de tijolo. O pó no ar lembra-nos constantemente que este edifício foi uma fábrica de tijolos tanto antes como depois da guerra.

Era também no piso térreo que se encontravam as latrinas. Aqui “formavam-se gigantescas filas à entrada de manhã à noite”, pode ler-se num cartaz que também descreve como homens aflitos com disenteria sofriam com o tempo de espera.

A poucos metros encontrava-se o cabaret a que chamavam Die Katakombe – um espaço que mostra como este não era um campo qualquer.

‘Inimigos’ e ‘indesejáveis’

Ao longo da história, a Provença francesa foi um local de refúgio para intelectuais de várias áreas. Quando Hitler chegou ao poder, muitos artistas alemães mudaram-se para Paris e para a Provença. Esses foram os primeiros a serem internados no Campo de Milles. Na primeira fase este era um campo para os “sujeitos inimigos”, incluindo conhecidos intelectuais e pintores, como Ferdinand Springer ou Max Ernst. Na segunda fase era um campo de trânsito para os “indesejáveis”. Daqui enviavam-nos, muitas vezes, de volta para a Alemanha. Só na terceira fase, entre Agosto e Setembro de 1942, é que funcionou como um campo de deportação para os judeus. Nunca foi um campo da morte e tinha um ambiente bem diferente daqueles.

No cabaret, por exemplo, realizavam-se espectáculos de ópera, teatro e leituras públicas. A entrada ainda hoje se encontra ornamentada com frescos de máscaras. “De fora podia-se dizer que era romântico. A verdade, porém, é que o que motivava estes encontros eram preocupações e medos”, descreve Kantorowicz, um dos exilados em França, entrevistado pelos fundadores. Estas catacumbas eram um espaço de lazer, um mercado para a troca de boatos, um mercado negro, um bar que servia vinho e conhaque, onde se podia fumar e degustar iguarias como presunto, bolos e chocolate. A liberdade de expressão e o tom irónico que aí se vivia acabaria por levar os nazis a decretarem o seu fecho.

Não era só à entrada do cabaret que se encontravam frescos – ao longo dos túneis ainda hoje se encontram várias flores pintadas.

“O primeiro andar também estava constantemente submerso na escuridão e era impensável ler-se. À noite acendiam algumas lâmpadas fracas, enfatizando a escuridão em vez de a quebrar”, relembra Lion Feuchtwanger na obra O Diabo em França. “O pó acumulava-se por todo o lado e toda a gente tropeçava nele, deixava o chão muito irregular; montes de lascas de tijolos, que se estavam literalmente a desfazer em pó, atafulhavam-se no chão”.

O segundo andar estava reservado às mulheres e crianças. Foi pela porta que dava acesso ao telhado que, numa noite de 1942, várias crianças conseguiram escapar com a ajuda de um dos guardas. A voz dessas crianças, hoje idosos, está presente em vários vídeos espalhados na primeira parte da exposição, onde se descreve a fuga. “Ele [o guarda Auguste Boyer] escondeu-nos no sótão até as escoltas saírem”, descreve Marcel Neiger numa entrevista a A. Fontaine. “No dia 13 de Agosto ajudou-nos a fugir e deu-nos guarida na sua casa na vila. Levou-nos para baixo, carregando às costas um a um – o meu irmão mais novo e a minha irmã”.

É no último andar, também, que hoje se encontra a secção reflexiva do memorial. A proposta é “compreender para amanhã”. Contrastando com a escuridão, o frio e pó dos túneis, este espaço é branco, limpo e climatizado. Nas paredes, encontram-se muitos títulos e alguns textos. Dizem:

‘A questão do mal.’

‘O que é o racismo?’

‘A responsabilidade de deixar fazer ou reagir.’

‘Passividade é a não assistência a alguém em perigo.’

‘O efeito de grupo.’

‘Os princípios para combater a barbárie: a educação dos espíritos antes dos tribunais.’

Noutra parede, destacam a ‘manipulação das palavras’ como forma de denegrir a imagem do outro:

‘ratos’

‘cães’

‘parasitas’

‘cancro da sociedade’

‘vermes’

Neste espaço percebe-se que mais do que um memorial, o Campo de Milles procura ser um centro reflexivo, uma espécie de museu dos direitos humanos, pois aqui não abordam só a guerra de 1939-45, estabelecem comparações, por exemplo, com o genocídio do Ruanda e o massacre da Arménia, em 1915-23.

“As pessoas estão habituadas a visitar os campos de extermínio [Auschwitz, Birkenau], nós pusemos o foco no início porque achamos que é com os sítios normais e as pessoas normais, como eu ou tu, que se chega ao mal”, explica Alain Choraqui. “Pusemos o foco na normalidade, porque é aí que se pode compreender e lutar”.

Sem apoio oficial, o grupo de cidadãos que criou este espaço nunca desistiu da ideia ao longo de 30 anos. “Era impossível abandonar o sítio que mostrava como a intolerância leva ao extermínio, que mostra o processo que vai da decisão normal, do dia-a-dia, ao genocídio”, comenta Chorraqui.

“Agora é mais fácil falar da história do período de Vichy”, diz Jean-François Chougnet, antigo director do Museu Berardo e director da capital europeia da cultura 2013 Marselha-Provença, evento ao qual o memorial se associou com a organização de colóquios e exposições. “Agora sabe-se que uma grande parte da população francesa foi favorável ao regime de Vichy”, continua Chougnet. “Com a segunda e terceira geração começa a ser muito mais fácil falar sobre esse período”.

Alain Chorraqui explica que a abordagem original do espaço reflexivo foi fruto de o memorial não ter sido feito por historiadores. E, segundo o director, “os cidadãos sentem que a História não dá todas as respostas”. Por isso, foi reunido um grupo multidisciplinar para uma investigação social que durou dez anos. “Quando acabámos, parecia que essa investigação não era suficiente, por isso criámos parcerias com universidades para alimentar o museu com mais conhecimento”.

Ao contrário do que acontece com a maioria dos campos de extermínio, aqui pretende-se que o visitante saia com um sentimento positivo, o sentimento de que é capaz de fazer a diferença. “A mensagem do memorial é ‘yes, you can’. Pensámos pôr a frase no início, mas depois, com Obama, ganhou uma conotação política”, explica Alain Chorraqui.

Além das visitas de grupo – escolas e associações – o memorial recebe muitas famílias com crianças. “É uma obrigação aprender”, comenta à saída Caroline Biencourt com dois filhos ao seu lado, um de cinco e outro de nove anos. Quando questionada sobre os conteúdos serem ou não próprios para crianças tão novas, responde: “A de cinco ainda não compreende, mas quanto mais cedo melhor”, diz apontando para o filho mais velho.

A visita continua já fora do edifício. “O caminho do campo até aos vagões de comboio marcou-me muito porque nós caminhámos pelo mesmo trilho que os prisioneiros, homens, mulheres e crianças”, descreve o estudante Sebastian numa nota de visita.

Em 2013 o Campo de Milles recebeu 70 mil visitantes. Apenas 38% das visitas são de escolas, sobretudo francesas, mas também alemãs. Já receberam jornalistas de quase toda a Europa e só do Japão vieram mais de 300.