É preciso ter cautela, pois podemos estar perante uma úlcera de Buruli: “É comum os pacientes não apresentarem dor nem sintomas sistémicos, como febre”, explica Jorge Pedrosa, que há sete anos estuda esta doença, liderando um grupo de trabalho no Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS), membro do Laboratório Associado ICVS/3B’s da Universidade do Minho. “Como consequência, as pessoas afectadas negligenciam as primeiras manifestações da doença (formas não ulcerativas), procurando tratamento apenas nos estádios ulcerativos mais avançados”, ou seja, quando a destruição dos tecidos cutâneos já for avançada, “o que pode acarretar sérias consequências”.
A África subsariana junta esta a outras doenças endémicas e de erradicação difícil. Nessas regiões, que percorrem a parte central e ocidental do continente, países como a Costa do Marfim, o Gana, o Benim, a R. D. do Congo (RDC) e os Camarões estão sinalizados com bastante preocupação pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Angola não dispõe de dados. No entanto, segundo Pedrosa, “já foram reportados alguns casos em artigos publicados em revistas internacionais”, e há também o risco mesmo na vizinhança, se se pensar na RDC. Mas há alguns focos também na Austrália, além da Ásia e da América Latina. Ou seja, naqueles pontos do globo onde a generosidade do sol, da fertilidade dos solos e da alegria das gentes tem algumas contrapartidas de peso…
Se a doença avançar, pouco há a fazer depois. Seguem-se as sequelas, com contracturas nas articulações, que podem levar mais tarde até à amputação do membro afectado. A necessidade de o doente passar por uma intervenção cirúrgica leva-o, por outro lado, a um “período de hospitalização muito longo, traduzindo-se numa enorme sobrecarga socioeconómica para o paciente e para os sistemas de saúde”, acrescenta Pedrosa.
Principais ‘suspeitos’
Mas como se contrai a doença? Esta é outra parte do puzzle ainda por montar nas mãos dos cientistas. É causada por uma bactéria, a Mycobacterium ulcerans e a infecção dá-se através do contacto com o meio ambiente onde ela existe. É importante notar, por isso, que não é transmissível de pessoa para pessoa, mas nas regiões endémicas ela chega a ultrapassar outras doenças causadas por micobactérias, como a tuberculose ou a lepra.
As formas de contágio ainda não estão totalmente esclarecidas, assevera Pedrosa. Alguns insectos aquáticos, voadores ou não, e/ou mosquitos, são os principais ‘suspeitos’.
O investigador português fez parte de uma equipa internacional que isolou em laboratório a Mycobacterium ulcerans a partir de um desses insectos aquáticos. Foi “a primeira vez que a bactéria foi isolada em cultura pura a partir do meio ambiente”, o que foi importante para “reforçar a hipótese” de a bactéria “ser um agente patogénico ambiental, podendo os insectos aquáticos estar implicados na sua transmissão”. Pedrosa participou noutros trabalhos ligados à doença, que ‘segue’ há sete anos no ICVS.
A úlcera de Buruli entrou nas prioridades da OMS em 1998, quando a organização criou uma iniciativa global para a controlar e para recolher dados que dêem alguma luz suplementar sobre a doença. Todos os anos, dizem estes dados, há cinco a seis mil casos novos, numa lista de 33 países. Mas a doença pode ‘disfarçar-se’ e iludir os números. Ela pode “ser confundida com outras doenças necrotizantes da pele (como as provocadas pelas infecções por fungos, a diabetes ou alguns tipos de cancro)” e, por isso, “sabe-se que apenas uma fracção dos casos são reportados”, explica Jorge Pedrosa.
Já existem, entretanto, dois antibióticos para a travar, recomendados desde 2004 pela OMS, a Rifampicina e a Streptomicina, que devem ser administrados durante oito semanas. Porém, lá está, é preciso combater a doença a tempo: “Para além do longo tempo do tratamento e dos efeitos secundários, nos casos mais severos este tratamento não é eficaz”. Nesses últimos casos, impõe-se a cirurgia para retirar o tecido infectado. Além disso, não existe vacina contra a úlcera de Buruli.
Resta esperar por mais investigação e, para que não se confirme algo que há muito se especula, que o aparecimento de novas zonas endémicas em África pode estar associado à desflorestação, à construção de novas barragens e sistemas de irrigação e às alterações climáticas. Isso pode até, conclui Pedrosa, levar “ao aparecimento de casos noutras zonas do globo”.
