‘Estava cego com a adrenalina’

Estudante, 22 anos: ‘Se não fossem os meus amigos, ia perder tudo. Estava cego com a adrenalina’

“O meu primo tinha saído de casa na minha mota. Dez minutos depois, um amigo disse-me que ele estava caído no chão. Esse episódio, quando eu tinha 16 anos, marcou-me muito emocionalmente. Hoje, consigo perceber que a morte do meu primo mudou a minha vida. Para abafar aquela dor, comecei a sair mais à noite e a beber copos. Mas o álcool nunca foi um problema.

Sempre fui muito activo relativamente a jogos. Em criança, lembro-me de sair das aulas para jogar ao pião com os meus colegas. Quem ganhava, ficava com os piões. Também jogávamos cartas, mas nunca a dinheiro. Por si só, o jogo dá-nos uma grande adrenalina. A possibilidade de obtermos uma recompensa traz mais emoção. E o dinheiro torna o jogo mais aliciante.

Aos 17 anos comecei a jogar poker em casa com amigos. Saltei para o poker online e comecei a jogar a dinheiro num Verão. Estava numa casa de férias e, através da internet, acedi a uma poupança onde tinha cerca de 300 euros. Meti todo o dinheiro numa casa de apostas online e perdi tudo em dois ou três dias.

Quando fiz 18 anos entrei para a Faculdade e pedi um empréstimo de 400 euros por mês. Foi nessa altura que comecei a jogar compulsivamente. O dinheiro, que seria para ajudar a pagar as despesas do curso, não durava mais do que três ou quatro dias. Uma vez, depois de sair das aulas, fui para o casino. Gastei todo o dinheiro do empréstimo nesse dia e senti que precisava de recuperar o que tinha perdido. Disse ao meu companheiro de jogo que tinha dinheiro em casa. Quando cheguei ao quarto, olhei para a carteira do meu irmão, que tinha 40 euros. Hesitei durante dez minutos, mas acabei por lhe roubar o dinheiro. A ideia de que com aquele dinheiro ia recuperar o que tinha perdido e ainda ganhar mais foi mais forte. Voltei ao casino e perdi tudo numa hora. Fiquei destroçado. Quando cheguei a casa, à noite, a minha mãe confrontou-me com o facto de faltar dinheiro na carteira do meu irmão. Não tive coragem de admitir e acusei a empregada. Jurei a pés juntos que não tinha sido eu. Esta doença tolda-nos o raciocínio. Faz-nos acreditar que ninguém vai saber de nada e que os nossos actos não têm consequências.

No primeiro ano da faculdade só fiz duas cadeiras. Passava os dias lá fora a fumar, a conversar e a jogar cartas. Basicamente, a fazer tempo até sair dali e ir para o casino às três da tarde. Não dava qualquer valor ao dinheiro. Podia ganhar 500 euros e, apesar de reconhecer que era muito dinheiro, naquele ambiente aquele valor não tinha qualquer peso. E depois jogava esses 500 e assim continuava até perder tudo. Cheguei a ir a casa buscar o cartão da minha mãe para levantar mais dinheiro. Acreditava que, depois de ganhar, lhe devolvia tudo. A possibilidade de ganhar mais e mais dinheiro deixava-me possesso.

Lembro-me de um episódio no Algarve em que entrei com 50 euros na roleta. Acertava em tudo, sentia-me no topo. E essa sensação é o que nos prende ao jogo. A sensação de que conseguimos superar o casino. Nessa noite ganhei quase mil euros e tenho a certeza de que, se não fossem os meus amigos a tirarem-me dali, eu ia perder tudo. Estava cego com aquela adrenalina toda. Gastei esses mil euros em dois dias. Em festas e em álcool. Cheguei até a perder 100 euros numa discoteca.

Houve uma noite em que estava completamente de rastos. Tinha perdido tudo e contei à minha mãe que estava viciado no jogo. Ela já desconfiava que algo se passava. Nunca a consegui enganar completamente. Às vezes chegava a casa cheio de dinheiro e ela perguntava-me onde é que eu andava metido. O que respondia? Que eram os ‘businesses’.

Foi aí que comecei a ser acompanhado por uma psiquiatra. Deu-me antidepressivos e pôs-me a falar com um psicólogo, mas não resultou. Não lhes contava a verdade. Tinha vergonha de contar toda a merda que tinha feito. Queria esconder aquilo em que me tinha tornado.

Consegui deixar o jogo, mas fiz uma cross-addiction. Cross-addiction é passar de uma droga para outra. Comecei então a fumar charros e deixei de ir às aulas. Para a minha mãe não desconfiar, saía de casa de bicicleta, às sete da manhã, e ia dormir e fumar para casa de um amigo. Sentia-me bem com o que estava a fazer de mal. Pensava sempre que havia quem fizesse pior. Metido na heroína, por exemplo.

Nunca chegaria à conclusão de que precisava de um tratamento se não fossem os meu pais a porem-me numa clínica, há pouco mais de um ano. No início de Novembro de 2012, fizeram uma reunião onde estiveram presentes o meu novo terapeuta, alguns familiares próximos e dois amigos que me conheciam do tempo em que a minha vida não era aquela. Na altura, ainda não sabia que ia para uma clínica de recuperação, mas já estava desconfiado. Tinha visto uns papéis de umas clínicas de reabilitação em casa do meu pai, que está divorciado da minha mãe desde os meus dois anos, e fiquei apreensivo.

Um dia, acordei às duas da tarde e quando cheguei à sala estavam lá os meus pais e o terapeuta. Sentei-me e leram uma carta de motivação com as coisas boas de que se lembravam de mim. Uma espécie de carta de motivação para eu ir para a clínica. Foi aí que me deram três opções de centros de recuperação: em Lisboa, em Londres e na Cidade do Cabo, na África do Sul. Demorei umas três horas a escolher, sentia-me claustrofóbico. Mas não havia nada que me prendesse a ficar cá. Aqui era só porcaria. Por ser Verão lá, escolhi ir para a África do Sul.

Fui para o tratamento a 30 de Novembro de 2012 e comecei-o a 1 de Dezembro. Integrei-me muito bem. Percebi rapidamente que aquele era o lugar onde eu devia estar. Havia pessoas de várias nacionalidades em tratamento: um israelita, holandeses, ingleses e muitos africanos. Estive lá três meses e, durante esse período, fui a única pessoa que fez tratamento em duas adicções: drogas e jogo.

Fazíamos caminhadas a pé na montanha, íamos à praia, tínhamos terapias de grupo e individuais, aulas de dança e praticávamos desporto. No secundário, a segunda fase do tratamento, tínhamos tarefas domésticas diárias, como varrer a casa, fazer a cama e manter tudo arrumado. Mais importante foi perceber por que razão tomei decisões que me fizeram mal. Cheguei à conclusão de que o fiz para evitar certas dores.

Os especialistas dizem que há uma componente genética associada ao vício. O meu avô era pianista e perdeu no jogo tudo o que tinha. Era um prodígio que se perdeu por causa do jogo. Há 30 anos desapareceu no Brasil e nunca mais foi visto.

Saí da clínica a 9 de Março de 2013. Agora, estou no segundo ano da Faculdade e concilio as aulas com reuniões de Jogadores Anónimos e de Narcóticos Anónimos. Também arranjei um trabalho. Hoje, 20 ou 40 euros já me fazem toda a diferença. No total, já paguei quase 800 euros em dívidas. De dinheiro que roubei a familiares e de empréstimos de amigos. Falta-me pagar o valor que devo ao banco, do empréstimo de estudante que pedi no primeiro ano de faculdade. Os meus pais podiam pagá-lo, mas não sentiria tanto na pele o facto de ter uma dívida.

A cada dia que passa sinto-me mais confiante na minha recuperação, mas também sei que nunca posso deixar de estar atento a todos os sinais”.

“O meu primo tinha saído de casa na minha mota. Dez minutos depois, um amigo disse-me que ele estava caído no chão. Esse episódio, quando eu tinha 16 anos, marcou-me muito emocionalmente. Hoje, consigo perceber que a morte do meu primo mudou a minha vida. Para abafar aquela dor, comecei a sair mais à noite e a beber copos. Mas o álcool nunca foi um problema.

Sempre fui muito activo relativamente a jogos. Em criança, lembro-me de sair das aulas para jogar ao pião com os meus colegas. Quem ganhava, ficava com os piões. Também jogávamos cartas, mas nunca a dinheiro. Por si só, o jogo dá-nos uma grande adrenalina. A possibilidade de obtermos uma recompensa traz mais emoção. E o dinheiro torna o jogo mais aliciante.

Aos 17 anos comecei a jogar poker em casa com amigos. Saltei para o poker online e comecei a jogar a dinheiro num Verão. Estava numa casa de férias e, através da internet, acedi a uma poupança onde tinha cerca de 300 euros. Meti todo o dinheiro numa casa de apostas online e perdi tudo em dois ou três dias.

Quando fiz 18 anos entrei para a Faculdade e pedi um empréstimo de 400 euros por mês. Foi nessa altura que comecei a jogar compulsivamente. O dinheiro, que seria para ajudar a pagar as despesas do curso, não durava mais do que três ou quatro dias. Uma vez, depois de sair das aulas, fui para o casino. Gastei todo o dinheiro do empréstimo nesse dia e senti que precisava de recuperar o que tinha perdido. Disse ao meu companheiro de jogo que tinha dinheiro em casa. Quando cheguei ao quarto, olhei para a carteira do meu irmão, que tinha 40 euros. Hesitei durante dez minutos, mas acabei por lhe roubar o dinheiro. A ideia de que com aquele dinheiro ia recuperar o que tinha perdido e ainda ganhar mais foi mais forte. Voltei ao casino e perdi tudo numa hora. Fiquei destroçado. Quando cheguei a casa, à noite, a minha mãe confrontou-me com o facto de faltar dinheiro na carteira do meu irmão. Não tive coragem de admitir e acusei a empregada. Jurei a pés juntos que não tinha sido eu. Esta doença tolda-nos o raciocínio. Faz-nos acreditar que ninguém vai saber de nada e que os nossos actos não têm consequências.

No primeiro ano da faculdade só fiz duas cadeiras. Passava os dias lá fora a fumar, a conversar e a jogar cartas. Basicamente, a fazer tempo até sair dali e ir para o casino às três da tarde. Não dava qualquer valor ao dinheiro. Podia ganhar 500 euros e, apesar de reconhecer que era muito dinheiro, naquele ambiente aquele valor não tinha qualquer peso. E depois jogava esses 500 e assim continuava até perder tudo. Cheguei a ir a casa buscar o cartão da minha mãe para levantar mais dinheiro. Acreditava que, depois de ganhar, lhe devolvia tudo. A possibilidade de ganhar mais e mais dinheiro deixava-me possesso.

Lembro-me de um episódio no Algarve em que entrei com 50 euros na roleta. Acertava em tudo, sentia-me no topo. E essa sensação é o que nos prende ao jogo. A sensação de que conseguimos superar o casino. Nessa noite ganhei quase mil euros e tenho a certeza de que, se não fossem os meus amigos a tirarem-me dali, eu ia perder tudo. Estava cego com aquela adrenalina toda. Gastei esses mil euros em dois dias. Em festas e em álcool. Cheguei até a perder 100 euros numa discoteca.

Houve uma noite em que estava completamente de rastos. Tinha perdido tudo e contei à minha mãe que estava viciado no jogo. Ela já desconfiava que algo se passava. Nunca a consegui enganar completamente. Às vezes chegava a casa cheio de dinheiro e ela perguntava-me onde é que eu andava metido. O que respondia? Que eram os ‘businesses’.

Foi aí que comecei a ser acompanhado por uma psiquiatra. Deu-me antidepressivos e pôs-me a falar com um psicólogo, mas não resultou. Não lhes contava a verdade. Tinha vergonha de contar toda a merda que tinha feito. Queria esconder aquilo em que me tinha tornado.

Consegui deixar o jogo, mas fiz uma cross-addiction. Cross-addiction é passar de uma droga para outra. Comecei então a fumar charros e deixei de ir às aulas. Para a minha mãe não desconfiar, saía de casa de bicicleta, às sete da manhã, e ia dormir e fumar para casa de um amigo. Sentia-me bem com o que estava a fazer de mal. Pensava sempre que havia quem fizesse pior. Metido na heroína, por exemplo.

Nunca chegaria à conclusão de que precisava de um tratamento se não fossem os meu pais a porem-me numa clínica, há pouco mais de um ano. No início de Novembro de 2012, fizeram uma reunião onde estiveram presentes o meu novo terapeuta, alguns familiares próximos e dois amigos que me conheciam do tempo em que a minha vida não era aquela. Na altura, ainda não sabia que ia para uma clínica de recuperação, mas já estava desconfiado. Tinha visto uns papéis de umas clínicas de reabilitação em casa do meu pai, que está divorciado da minha mãe desde os meus dois anos, e fiquei apreensivo.

Um dia, acordei às duas da tarde e quando cheguei à sala estavam lá os meus pais e o terapeuta. Sentei-me e leram uma carta de motivação com as coisas boas de que se lembravam de mim. Uma espécie de carta de motivação para eu ir para a clínica. Foi aí que me deram três opções de centros de recuperação: em Lisboa, em Londres e na Cidade do Cabo, na África do Sul. Demorei umas três horas a escolher, sentia-me claustrofóbico. Mas não havia nada que me prendesse a ficar cá. Aqui era só porcaria. Por ser Verão lá, escolhi ir para a África do Sul.

Fui para o tratamento a 30 de Novembro de 2012 e comecei-o a 1 de Dezembro. Integrei-me muito bem. Percebi rapidamente que aquele era o lugar onde eu devia estar. Havia pessoas de várias nacionalidades em tratamento: um israelita, holandeses, ingleses e muitos africanos. Estive lá três meses e, durante esse período, fui a única pessoa que fez tratamento em duas adicções: drogas e jogo.

Fazíamos caminhadas a pé na montanha, íamos à praia, tínhamos terapias de grupo e individuais, aulas de dança e praticávamos desporto. No secundário, a segunda fase do tratamento, tínhamos tarefas domésticas diárias, como varrer a casa, fazer a cama e manter tudo arrumado. Mais importante foi perceber por que razão tomei decisões que me fizeram mal. Cheguei à conclusão de que o fiz para evitar certas dores.

Os especialistas dizem que há uma componente genética associada ao vício. O meu avô era pianista e perdeu no jogo tudo o que tinha. Era um prodígio que se perdeu por causa do jogo. Há 30 anos desapareceu no Brasil e nunca mais foi visto.

Saí da clínica a 9 de Março de 2013. Agora, estou no segundo ano da Faculdade e concilio as aulas com reuniões de Jogadores Anónimos e de Narcóticos Anónimos. Também arranjei um trabalho. Hoje, 20 ou 40 euros já me fazem toda a diferença. No total, já paguei quase 800 euros em dívidas. De dinheiro que roubei a familiares e de empréstimos de amigos. Falta-me pagar o valor que devo ao banco, do empréstimo de estudante que pedi no primeiro ano de faculdade. Os meus pais podiam pagá-lo, mas não sentiria tanto na pele o facto de ter uma dívida.

A cada dia que passa sinto-me mais confiante na minha recuperação, mas também sei que nunca posso deixar de estar atento a todos os sinais”.

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