Uma vida sem trigo

Estima-se que existam em Portugal cerca de 85 mil celíacos, dos quais apenas 15 mil estão diagnosticados. Esta doença genética que não tem cura e cujo único tratamento conhecido é uma dieta isenta de glúten provoca sintomas tão díspares como diarreias, depressões, infertilidade ou anemia. Mas mesmo entre quem não tem esta doença, já há…

Reza a história que quando o pão começou a escassear durante a II Guerra Mundial, o pediatra holandês Dr. Willem-Karel Diecke notou melhorias dos sintomas celíacos nos seus pequenos pacientes e, pelo contrário, que eles pioravam assim que os aviões de ajuda suecos começavam a lançar pão sobre a Holanda. Nos anos que se seguiram, o médico analisou profundamente os seus pacientes e acabou por estabelecer, em 1953, aquela que viria a ser a primeira relação entre a doença celíaca e o consumo de trigo.

Se os primeiros diagnósticos foram feitos em crianças de seis meses, idade em que se introduzia na sua alimentação as papas, os cereais e as bolachas, hoje esta doença genética – que se traduz numa sensibilidade crónica ao glúten, proteína presente no trigo, centeio, cevada e aveia – está a ser diagnosticada também em mulheres em idade fértil e até em pessoas com mais de 65 anos. “Esta alteração do paradigma deve-se ao facto de ser uma doença multifactorial com os seus sintomas a serem muito vastos, podendo ir de anemia, perda de ferro, hemoglobina baixa, diarreias consecutivas ou obstipações severas até irritabilidade ou depressões. É uma doença que pode ainda estar adormecida e só aparecer mais tarde mas, a maioria, são pessoas que sofrem toda a vida e são mal diagnosticadas como tendo doença de Crohn ou intolerância à lactose. Só mais tarde é que se chega à conclusão que sempre foram celíacas”, refere Rita Jorge, da Associação Portuguesa de Celíacos (APC), que estima que existam cerca de 85 mil celíacos nacionais, embora só 15 mil estejam diagnosticados.

Esta informação é também corroborada pela dietista Mónica Pitta Grós, do Hospital D. Estefânia, em Lisboa, que trabalha com estes doentes há mais de 11 anos: “Ultimamente temos também feito diagnósticos de doença celíaca a mulheres que não conseguem engravidar. O facto de não estarem a fazer a absorção completa dos nutrientes associa-se também à infertilidade”. Rita Jorge explica que “a ingestão de glúten por parte dos doentes leva o organismo a desenvolver uma reacção imunológica contra o próprio intestino delgado, provocando lesões na sua mucosa, destruindo as vilosidades intestinais, responsáveis pela absorção dos nutrientes existentes nos alimentos”.

Desde Outubro de 2012 que o Estado já comparticipa as análises de sangue que permitem despistar a doença e fazer um diagnóstico atempado. “Basta fazer as análises aos anticorpos da doença celíaca e depois a confirmação faz-se através de endoscopia com biópsia. Antes andavam à volta dos cem euros, agora têm um custo de dois euros! É preferível que os médicos as passem do que a pessoa andar a sobrecarregar o Estado com exames, internamentos e medicamentos para tudo e mais alguma coisa porque não se descobre o que ela tem”, reforça Rita.

Feito o diagnóstico, estabelece-se uma dieta sem glúten. Como refere Ana Martins, da Associação_Portuguesa de Nutricionistas, estamos a falar de uma alimentação que exclui “pão, tostas, massas, produtos ? de confeitaria e pastelaria, bolachas e os tradicionais cereais de pequeno-almoço… O glúten pode ainda encontrar-se numa grande variedade de outros produtos, nomeadamente molhos e temperos, sopas instantâneas, sobremesas, patês, alguns gelados, cafés e chás aromatizados, sucedâneos de chocolate, queijos fundidos, produtos à base de carne (por exemplo hambúrgueres, almôndegas, enchidos e produtos de charcutaria), pescado ou frutos do mar (por exemplo, panados de peixe). Estando o glúten presente em muitos alimentos processados, é de capital importância a leitura atenta dos rótulos dos produtos”. Depois há ainda o glúten escondido nos batons, pasta de dentes e comprimidos.

Já Rita sublinha o que não representa perigo: “São muitos os alimentos permitidos: frutas, legumes, leguminosas, carne, peixe, ovos, mariscos, leite – tudo isto é isento de glúten! E tendo por base a pirâmide dos alimentos, que é uma forma de visualizar as coisas, só a primeira fatia tem glúten (é a que contém os alimentos que são feitos com alguns dos quatro cereais proibidos), tudo o resto, que é a maioria, não tem!”.

Ainda assim jantar ou lanchar fora pode ser um autêntico desafio para estes doentes. Em Lisboa já há alguns locais que promovem ementas sem glúten. Um dos primeiros foi a Open Brasserie Mediterrânica que, pelas mãos do chefe João Silva, tem uma ementa certificada desde 2013. “Temos sempre a preocupação de ter pelo menos uma opção sem glúten na entrada, outra no prato principal e outra na sobremesa. E ainda temos opções sem lactose e vegetarianas. Além de que fazemos também outros pratos a pedido dos clientes”, refere. Além disso o chefe garante: “Quando chega uma pessoa gluten free ou celíaco, paramos todo o trabalho ‘normal’, limpamos a área onde vamos trabalhar e todos os instrumentos que vamos utilizar e concentramo-nos a fazer só aquela preparação”.

Outro defensor da causa dos celíacos é José Avillez: “Temos pratos que não contêm glúten em todos os nossos restaurantes, como por exemplo a burrata com pesto e pinhões da Pizzaria Lisboa; o risotto de cogumelos portobello, toucinho fumado e queijo parmesão do Cantinho do Avillez; o bife à café Lisboa do Café Lisboa. Sempre tive opções sem glúten na carta mas agora há cada vez mais procura”, garante. Em Lisboa há ainda o restaurante Este Oeste, no Centro Cultural de Belém, a cafetaria do supermercado biológico Miosótis e a padaria Fábrica dos Sabores, com pão sem glúten.

E emagrece?

“A resposta é não”, diz taxativamente Mónica Pitta Grós. A mesma opinião tem Rita Jorge: “Hoje fala-se muito da dieta sem glúten para perdas de peso mas não tem absolutamente nada a ver. Uma coisa é falarmos numa dieta que retire hidratos de carbono, gorduras e açúcares, e aí vamos maioritariamente retirar produtos que têm por base o glúten. Mas, por exemplo, o arroz, o milho e a batata não têm glúten e se nós fizemos a nossa alimentação com base nesses produtos engordamos na mesma!”. Ainda assim, há quem preconize este tipo de dietas para emagrecer. O cardiologista norte-americano William Davis, no seu livro Sem Trigo, Sem Barriga, bestseller do New York Times, defende que qualquer pessoa – independentemente de ter ou não a doença celíaca, ser intolerante ou alérgica ao glúten – deve evitar o consumo de trigo, centeio, cevada e aveia para prevenir outro tipos de doenças que vão desde a obesidade à diabetes. Não é por isso de estranhar que os conselhos do Dr. William Davis tenham seguidores. Miley Cyrus, Gwyneth Paltrow ou Victoria Beckham afirmaram publicamente que seguem regimes gluten free. No entanto, a nutricionista Ágata Roquette adverte: “Como se vêem obrigados a tirar a maioria dos hidratos de carbono, automaticamente irão consumir menos calorias e verão a balança a baixar mas, ao longo do tempo, penso que seja melhor ir introduzindo tudo novamente”. Ao que Mónica acrescenta: “As dietas hipocalóricas para perda de peso devem ser equilibradas. Quando se faz uma dieta muito restritiva, sem hidratos de carbono, a perda de peso é mais rápida porque, na verdade, estamos a falar de perda muscular, o que não é saudável”. E resume: “Não é o glúten que engorda, é o excesso de açúcares, hidratos de carbono e gorduras”.

patricia.cintra@sol.pt