Entre 1933 e 1974, enquanto o resto da Europa vivia as suas próprias convulsões sociais, guerras e ditaduras, o Portugal do Estado Novo era para muitos um porto de abrigo. Foi essa realidade que o historiador britânico Neill Lochery quis retratar em Lisboa – A Cidade Vista de Fora (1933 – 1974), uma espécie de Casablanca em versão portuguesa, sem Humphrey Bogart, mas com Ingrid Bergman, Grace Kelly, Maria Callas, Brigitte Bardot e Jackie O.
Editado pela Presença, o livro percorre as memórias de vários estrangeiros que passaram por Lisboa durante o Salazarismo, ou que ficaram largas temporadas na cidade. Desde reis e rainhas no exílio a diplomatas, passando por estrelas de Hollywood, artistas plásticos, refugiados e chefes de Estado, foram muitos os que estiveram em Lisboa – fosse por três dias, fosse por anos.
O tema, de resto, já tinha sido tratado por Lochery em Lisboa – A Guerra nas Sombras da Cidade da Luz (1939 – 1945), também editado pela Presença, que retrata como viveu Lisboa o período da II Guerra Mundial, e quem por aqui passou. Neste segundo livro, o historiador reuniu informação que tinha ficado de fora do primeiro. “Fiquei bastante satisfeito com o primeiro livro, mas com a sensação de que havia outra história para contar. O livro centrava-se no Estado Novo e em Salazar, em como se posicionou na guerra, como manteve os portugueses fora da guerra e como lucrou com a guerra. Este segundo livro foca-se mais no que os estrangeiros pensavam de Lisboa, na percepção que havia de fora do país”, explica ao SOL Neill Lochery numa entrevista realizada no Hotel Ritz, em Lisboa, que, construído no início dos anos 50, recebeu muitos dos estrangeiros que passaram por Portugal durante o Estado Novo. E foram os testemunhos dessas pessoas, que Lochery encontrou durante a sua pesquisa, que deram origem a esta ‘sequela’. “Todos os que aqui estiveram tinham uma opinião de Lisboa, uns mais positiva que outros. Muitas dessas opiniões eram muito interessantes. Foi isso que usei para este livro”.
Mas o que leva um historiador escocês especializado no Médio Oriente a interessar-se pela história portuguesa? Um mero acaso: o de ter vivido, durante a década de 80, em Coimbra, enquanto trabalhava como professor para o British Council. “Há muito tempo que estava consciente das histórias desse período. Se bem que, nos anos 80, as pessoas tinham uma certa relutância em falar do Estado Novo. Estive aqui apenas uma década depois da Revolução. Nessa altura nem havia livros sobre Salazar”. Foi através de pesquisas na Torre do Tombo e noutros arquivos (americanos, ingleses, portugueses, diplomáticos, televisivos, memórias) que Neill Lochery se documentou para fazer este livro, onde se encontram inúmeros relatos dos que por cá passaram. E nem sempre positivos. Antoine de Saint-Exupéry, o autor de O Principezinho, que esteve em Lisboa em 1940, escreveu: “Lisboa parecia-me uma espécie de paraíso, radiosa mas triste. As pessoas falavam muito de uma invasão iminente e Portugal agarrava-se com determinação à ilusão da sua boa sorte… Todo o continente se agigantava sobre Portugal como uma espécie de montanha ameaçadora, pejada de aves de rapina”.
Ponto de encontro de espiões e diplomatas, Lisboa assumia-se como palco de manobras de bastidores relacionadas com a guerra. E nem sempre, assegura Neill Lochery, de pouca monta: “Nem toda a gente sabe, mas foi em Lisboa que os italianos se tentaram render aos britânicos. Mas os americanos não estavam prontos, o Einsenhower entrou em pânico com estes italianos a chegarem a Lisboa…”. O acordo acabaria por não se concretizar.
Foi por aqui também que muitos perseguidos pelo nazismo conseguiram escapar para a América do Norte, desde Peggy Guggenheim aos pintores Max Ernst e Marc Chagall. E se Peggy e Ernst se divertiram na Costa do Estoril, Chagall terá chegado a Lisboa deprimido, depois de ter sido preso em Fraça pela Gestapo e forçado a deixar para trás tanto a filha como as suas obras. Aqui esperou por ambos mas, com o Guggenheim e o MOMA a pagarem-lhe o bilhete para os EUA, não teve remédio se não embarcar sem filha e sem quadros, na esperança de que ambos o seguissem. “Quem cá chegava vinha exausto, depois de ter passado por coisas muito complicadas em Espanha e França. E mesmo para quem era rico, rapidamente ficava sem fundos aqui, e conseguir comprar um bilhete para sair era muito difícil. Além disso, havia uma Polícia secreta que era difícil de compreender e uma atmosfera muito claustrofóbica. Chagall chegou aqui num estado terrível, porque tinha sido preso pela Gestapo. Viu em primeira mão aquilo que muitos temiam: estava à beira de um esgotamento nervoso”.
Finda a guerra, poder-se-ia pensar que Lisboa ficaria esquecida e deixaria de ser lugar de recreio ou porto de abrigo. Mas não foi assim. Figuras de proa mundiais continuavam a aterrar ou desembarcar em Lisboa. Eva Perón visitou a cidade em 1947, o ainda general Eisenhower em 1951 (voltaria em 1960, no fim do mandato presidencial, tendo sido recebido efusivamente pela população) e a Rainha Isabel II veio em visita de Estado em 1957.
Mas nem só de agentes políticos se faziam as relações públicas do país. Maria Callas, por exemplo, a diva da ópera, deslocou-se à cidade em 1958 para actuar no Teatro Nacional de São Carlos, estando, na altura, no apogeu da sua carreira e tendo ali realizado uma gravação extremamente elogiada pela crítica, que ficaria conhecida como a ‘Lisbon Traviata’. E eram muitos os aristocratas europeus exilados em Cascais e Estoril. Além da família real espanhola, viviam ali Humberto II, de Itália, Carol, da Roménia, Miklós Horthy, da Hungria, e José Francisco de Habsburgo, da Áustria.
“Muita desta realeza veio para o Estoril durante a guerra. Portugal era uma das melhores opções, porque era neutro. Muitos ficaram, ou voltaram depois da guerra, porque Salazar, desde que não o incomodassem, não se importava com o que acontecia no Estoril. Por isso, naquela sociedade fechada da realeza no Estoril, havia uma certa abertura. Muitos ainda lá estão hoje, ou os seus descendentes, a jogar golfe”, diz Lochery, que assegura que esta realeza, mesmo deposta, vivia em fausto. Não só eram muitas as festas dadas nas suas várias casas como o Hotel Palácio, no Estoril, recreio destas famílias, foi palco de desfile de moda organizados pelo próprio Christian Dior, e local escolhido para casamentos de princesas. O mais faustoso, diz Lochery, foi o de Maria Pia, filha de Humberto de Itália, que se casou com o príncipe Alexandre da Jugoslávia em 1955. Para testemunhar o enlace, chegaram ao Estoril membros da realeza de todo o mundo.
A ‘nova monarquia’ também não queria ficar de fora deste círculo da alta sociedade, com celebridades como a actriz Ingrid Bergman a vir passar férias ao Estoril, Claudia Cardinale a instalar-se no Ritz e Brigitte Bardot a dar um ar da sua graça em Lisboa.
Mas foi uma antiga actriz e na altura princesa reinante que encantou o país. Em 1964 Grace Kelly, do Mónaco, veio a Portugal com o marido, Rainier, e com os filhos, com o intuito de ver como corria por cá a acção da Cruz Vermelha, da qual era patrona. Participou em jantares com Salazar e visitou Cascais, a Nazaré e Fátima. Mais tarde, em 1967, voltou, desta feita para assistir ao casamento da infanta Pilar de Espanha, no Estoril. “O Estoril e Lisboa faziam parte da cena internacional da realeza europeia. Grace Kelly esteve aqui muitas vezes, às vezes para casamentos, às vezes a trabalhar para instituições de caridade. O livro acaba em 1974, mas ela veio várias vezes a Portugal depois disso. Era anfitriã de bailes no Casino do Estoril quase todos os anos. Gostava muito de estar aqui. Não é o mesmo que Monte Carlo mas é possível ver as semelhanças”.
E o grande ícone do estilo dos anos 60 também esteve em Lisboa, ainda que por curtas horas. Foi em 1966 que Jackie Kennedy, viúva de John F. Kennedy, fez escala em Lisboa no regresso aos Estados Unidos depois de umas férias em Genebra, chegando à capital com os seus dois filhos num dia de Inverno. Com pouco tempo para turismo, visitou Alfama e viu alguns dos mais importantes locais da cidade, tendo dito aos jornalistas: “Lisboa é uma cidade muito bonita e com a luz do sol deve ser uma maravilha. Tive pena de dispor de pouco mais de meia hora para a visitar e, ainda por cima, estava a chover. Mas disseram-me que normalmente o tempo em Lisboa é magnífico”. Ficou no ar a esperança de um regresso mas Jackie nunca voltou.
Estas visitas, que cobriam a cidade de glamour, não disfarçavam o que se passava fora destes círculos. Neill Lochery é assertivo: “Este foi um período muito estranho. Havia aqui muita gente importante, quer do ponto de vista diplomático, quer do ponto de vista cultural, mas, ao mesmo tempo, havia uma pobreza incrível e os níveis de educação eram muito baixos. Os anos 50 e 60 foram particularmente duros, o custo a guerra colonial foi muito elevado. Espero que isso transpareça no livro”.