Teatro: Infância cinzenta

Em palco estão três actores adolescentes. Enfrentando o público, pedem que se recue ao longínquo território da infância. Que nos lembremos de quando tínhamos sete anos. Como era a nossa casa? A cara do nosso melhor amigo? As brincadeiras no recreio? Os pensamentos antes de adormecer? Está distante, a infância. Mas é desse período da…

O quotidiano que a húngara Edit Kaldor quis retratar em Woe, em cena no Teatro Maria Matos, em Lisboa, hoje e amanhã, raramente aparece em palco, nas páginas dos livros ou nos jornais. Aqui não há uma infância feliz mas também não há abusos, há histórias – quase – banais de negligência e violência que não chegam a ser casos de polícia.

Foi depois de trabalhar sobre a falta de poder para controlar o que nos acontece e de como o que nos acontece nos molda que a encenadora teve a ideia para peça, lembrando-se da sua infância, olhando para o seu filho, e pensando em como a infância é determinante no que viremos a ser. Sobretudo quando as experiências são negativas. “Há vivências sobre as quais não se fala por não haver um local para o fazer. O teatro pode ser um bom lugar para falar sobre elas”, diz a encenadora ao SOL. “A negligência e a violência fazem parte da vida de muita gente. Não se pode dizer que algumas crianças sofrem abusos e que todas as outras têm uma infância perfeita e feliz”. O que interessa à criadora é a área cinzenta que está entre uma infância negra ou luminosa. “Muitas crianças são vítimas de negligência ou violência. E aquilo por que passamos na infância molda a forma como percepcionamos o mundo”.

Aqui fala-se de infâncias solitárias. Que fazer quando, aos sete anos, ninguém nos vai buscar à escola? Que fazer, aos sete anos, se ninguém nos prepara o almoço, se não há nada no frigorífico? Quando não se tem chave de casa e ninguém nos abre a porta e já está demasiado escuro para ir brincar para o parque infantil? Se ninguém nos consola os pânicos antes de adormecer? Se se ouve a mãe ou o pai chorar a meio da noite? A infância não é, necessariamente, um território feliz.

rita.s.freire@sol.pt