Em ano de crise, a festa fez-se com a prata da casa, sendo portuguesa a maioria dos escritores que ali passou. A aposta foi ganha. Não foram precisas muitas estrelas mundiais para transformar esta edição na mais bem sucedida de sempre: com capacidade para 600 pessoas, a sala esteve sempre cheia (a anterior, o Auditório Municipal, sentava 400), com pessoas de pé e sentadas no chão, vindas até do Algarve. E uma ideia foi referida por todos, com pequenas variantes: numa altura em que o Governo fala de milagre económico, aqui viveu-se um milagre literário.
Depois de anunciado o Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes d’Escritas (para Uma Mentira Mil Vezes Repetida, de Manuel Jorge Marmelo) e feita a homenagem a Maria Teresa Horta, a conferência de abertura encheu-se para ouvir Adriano Moreira falar sobre a língua portuguesa, salientando que “a língua não é nossa, a língua também é nossa”. Depois foram sete mesas ao longo de três dias, com a sala sempre cheia.
Num ano em que a crise, a política e as duras críticas ao estado do país e ao léxico do Governo dominaram as intervenções, as de João de Melo e Helder Macedo foram particularmente incisivas. O autor de Gente Feliz Com Lágrimas, o primeiro escritor a falar no encontro, deu o tom: “Não sei quem veio de fora, nem por que motivo as coisas deixaram de ser nossas – mas voga por aí uma presença estranha, o rosto invisível e absoluto de um qualquer ocupante estrangeiro. Ele mudou o nome das coisas e a precisão doméstica dos nossos sítios. Tomou conta dos lugares públicos. Aquartelou-se nas casas, nas tribunas e nos templos. E agora impõe-nos uma ordem social e espiritual que nunca foi nossa: ou seja, uma religião sem princípios, a confraria da imoralidade”.
E continuou, traçando um sarcástico retrato do país: “São populares e risonhos os amanuenses e os ditadores do país onde já não acontece nada. Basta-nos, para que isto ainda exista, haver lá no alto um cardeal primeiro-ministro, alguns bispos e curas nos ministérios e uns quantos noviços por secretários de Estado – mantendo-se assim a nossa ilusão acerca da existência do país. Bastam-lhe os lugares sentados no Parlamento e um talentoso orador a gritar ao povo; bastam-lhe dois escritores e meio para falar por todos; doze actores de teatro e cinema, dez polícias e um general, um maestro de batuta erguida ante as cinquenta e duas cabeças de uma orquestra, 0,1 arrependidos políticos confessos, 2,06 professores e sindicalistas, três médicos e meio engenheiro, um cantor de fados e treze guarda-costas, um agricultor e oito industriais, um futebolista e três quartos de outro, um careca idoso e outro careca que ainda exibe o cartão jovem ou o título de novo empreendedor – e fica completo o comício Vão-se os homens desta terra que em tudo deixou de valer a pena desde que sua alma se fez pequena. Vão-se os anéis e os dedos, os pomares e as vinhas, as searas de trigo e os pinhos, os pássaros e o milho – e calam-se pouco a pouco as vozes e os sinos”.
Contrariando a ideia de que um poeta não tem sentido prático, Helder Macedo apelou à acção, considerando que remar contra a corrente é hoje uma obrigação, devido ao momento político que se vive em Portugal: “Na minha juventude e adolescência era bem mais complicado fazê-lo. Estamos a ser diariamente ofendidos neste país e estamos a ser bem comportados demais. Temos obrigação de ser malcriados. Vamos celebrar o grande e universal manguito”, disse o escritor, do alto dos seus quase 80 anos, ainda cheios de rebeldia.
Lídia Jorge, que falou sobre a criação literária e a luta entre o cérebro louco e o cérebro lúcido, lembrou o dia em que acedeu a escrever um texto para o festival francês Poussière du Monde. Na véspera da entrega, uma noite de Verão algarvia, sem ideias, decidiu dormir sobre o tema. Quando acordou, nada. “Pensei: a madrugada vai dar-me uma ideia. Mas quando pus o pé fora de casa, em vez de ter uma mensagem dos astros, tinha uma ratazana morta nos portais. Era uma oferta da manhã demasiado má. Não ia conseguir cumprir o prazo”. A autora saiu e foi a um café, onde encontrou uma amiga à espera de um padre para lhe benzer a casa, onde dizia passarem-se coisas estranhas. “Quando os filhos iam para a piscina, começavam a cair lá dentro pedrinhas. Quando as crianças almoçavam, pedrinhas para cima da mesa. Depois começou a ser à noite e às tantas pedrinhas para toda a família. A situação era alarmante: os vizinhos diziam que não eram eles, a TVI foi lá fazer uma reportagem. Até que uma vidente lhe disse: ‘Essas pedrinhas são enviadas pelas almas das crianças mortas, que gostam imenso dos seus filhos e vêm brincar com eles quando os vêem felizes. Vá para casa e não tenha medo’“. A mulher, aterrorizada, foi para o café esperar o padre. Lídia Jorge, essa sim, foi logo para casa escrever. E cumpriu o prazo com o conto ‘Casa de Campo’. “Houve um triunfo do espírito louco sobre o espírito lúcido. Escrevemos com todas as raivas, fúrias e alegrias que a vida nos vai dando. Mas escrevemos, sobretudo, com esse espírito louco que permanentemente tentamos dominar”.
A crise e a criação literária foram os temas predominantes do festival, ao longo das sete mesas que se lhe seguiram (a última já em Lisboa, na segunda-feira, no Instituto Cervantes), com intervenções de habitués do festival, como Ana Luísa Amaral, Rui Zink, Ondjaki e Onésimo Teotónio de Almeida, e estreias há muito aguardadas, como a de José Rentes de Carvalho, ou de autores ainda em começo de carreira literária, como Ana Margarida Carvalho e Joana Bértholo.
Entre todos, muitas ficaram na memória, como a de António Mota, a propósito da relação entre ficção e verdade, sobre a sua truta Finória. “Quando tinha oito anos, aprendi com o Quinzinho Alfaiate a difícil arte de pescar trutas, que é um peixe lambão, muito arisco”, contou. “Mas ele enchia o seu cabaço com trutas de palmo e meio e eu nunca pesquei nada de que me orgulhasse, só miudezas. Foi muito frustrante. Muitos anos depois, resolvi vingar-me e inventei uma truta muito especial, pus-lhe o nome de Finória, e pu-la a nadar dentro do primeiro livro que escrevi. Isto aconteceu em 1979”. Anos depois, disse, dois homens foram falar com ele. “Eram funcionários de um Ministério de que já esqueci o nome, mas não eram das Finanças, disso me lembro bem, e disseram-me que tinham recebido uma carta de um cidadão a queixar-se que o rio da sua terra estava a ser poluído pelos esterco de uma vacaria, responsável pela morte das trutas”. Na carta o senhor escrevia que nesse rio tinha vivido uma truta famosa, chamada Finória, e sobre a qual tinha escrito António Mota no livro A Aldeia das Flores. “Fiquei de boca aberta. A Finória afinal existiu. E o que respondi aos funcionários? Achei que ficava mais reconfortante dizer que sim, que o senhor da carta, no essencial dizia toda a verdade”.
Também Inês Pedrosa recuou no tempo, mas para lembrar uma viagem que fez no Verão de 2000, percorrendo a Europa num comboio cheio de escritores, na qual pediu a cada um o seu epitáfio. “Alguns reagiram muito mal: declararam-se indisponíveis para morrer. A dinamarquesa Sulaima Hind, que foi abandonada pelos pais num orfanato, viveu na rua dos 14 aos 20 e poucos anos e chegou a arrombar hospitais para beber álcool puro, pegou na caneta com um sorriso inocente e escreveu no meu caderno de capa preta: ‘Hei-de voltar’. O grego Anastassis Vistonitis preferiu uma síntese narrativa: ‘Ele escreveu livros e viveu’. O belga Kamiel Vanhole hesitou entre: ‘Aqui jaz Kamiel Vanhole depois de 70 anos de errância’ e ‘Deixem-me em paz’. A francesa Annie Saumont, senhora, aos 73 anos, de um humor directamente proporcional à sua capacidade de resistência, epitafiou-se assim: ‘Aqui não jaz Annie Saumont. Ela quis que as suas cinzas voassem, poluindo o ar de Paris. Os verdes bem podem queixar-se. Daqui a dez anos, não se encontrarão os seus livros, nem sequer num alfarrabista de bairro’. O epitáfio que me apeteceu roubar foi o do poeta sueco Hakan Sandell: ‘Céu azul, luta, muda’. Depois aconteceu que inscrevi sobre a campa real do cemitério de um dos meus romances o epitáfio que o escritor galego Carlos Casares me oferecera: ‘Aqui jaz alguém que nunca quis morrer, que teve a sorte de nascer homem, não Deus’“.
No dia em que Inês Pedrosa escreveu essa frase de Casares, telefonou-lhe o poeta Alberto Porlan, para lhe dar a notícia de que Casares tinha acabado de morrer, de ataque de coração. “A literatura não nos salva – às vezes até nos mata. Mas permite-nos conversar pela noite fora com gente de todos os séculos e de todos os idiomas, fechar a névoa do tempo numa cápsula. A literatura, como a Primavera que um dia destes há-de voltar, faz florir os túmulos”.
Foram mais de 30 as intervenções feitas ao longo dos três dias. Mas nenhuma suscitou tantos aplausos, comoção, admiração e conversas como a de Eduardo Lourenço. Aos 91 anos, o professor salientou que a cultura ocidental atravessa a sua maior crise, que não é europeia, mas sem sujeito. “A crise vem-nos de fora, mas de onde?”, questionou, lembrando o século XX europeu, “um dos mais sinistros da história ocidental. As tragédias gregas tornaram-se banais. Há 100 anos esta Europa entregou-se a uma auto-destruição que foi o primeiro momento do buraco negro em que fomos caindo, e que não tem precedentes. Ao fim deste século de horrores que culminaram com o Holocausto e Hiroshima, pensávamos que íamos entrar numa espécie de planície. Mas afinal não é o que está acontecendo. E nós estamos aflitos com isso, porque fomos invadidos por uma espécie de vampiros como aqueles do cinema de Hollywood. Não é por acaso que o tema dos vampiros se tornou moda. Os vampiros são emissários da morte, é como se estivéssemos a viver uma espécie de apocalipse em directo, e esse apocalipse não é só de gente armada, é de qualquer coisa que nos suga o sangue e o sentido daquilo que vivemos”. Mas o filósofo não quer contribuir para uma depressão em segundo grau. “Com algum tempo, e alguma sorte, havemos de sair desta espécie de atoleiro em que estamos mergulhados. É possível. Isto aconteceu-nos muitas vezes na nossa história. Um país tão pequeno como o nosso, uma barca tão frágil como a nossa, foi a primeira a sair desta Europa à procura do mundo”.
E depois chegou a frase que com a sua extrema lucidez e optimismo perdurará na memória dos que ali estiveram: “Eu sei o que é estar à beira do abismo, estou olhando para ele, está próximo, o meu próprio fim. Mas isso que é válido para os indivíduos, não é válido para aquilo que nos transcende e é maior que nós. Não creio que possamos continuar nesta espécie de submissão resignada. Camões falava da apagada e vil tristeza, mas não estamos no tempo de Camões, estamos num mundo dotado da capacidade de se superar a si próprio. Temos a capacidade de inventar um futuro, sem esperar por ele. Mas somos incapazes de dar resposta às coisas elementares, como sobreviver. Temos que ter paciência. Esperemos um pouco”.
Esperemos também pelas Correntes, que no próximo ano comemoram os seus 16 anos. Cada vez maiores, estão quase a chegar à idade adulta.