Desafio da canela pode matar

“Alguém pode morrer a fazer isto. É horrível”. Foi assim que reagiu Rita, de 22 anos, segundos depois de ter tentado engolir a canela em pó que colocou numa colher de sopa. Toda esta experiência, que a deixou aflita e engasgada, foi filmada por si própria e colocada no Youtube.

A jovem tinha acabado de tentar fazer o chamado desafio da canela, um jogo perigoso que se tornou viral um pouco por todo o mundo e também em Portugal. A moda preocupa os especialistas que alertam para os riscos de problemas respiratórios graves.

Nos EUA, depois de dezenas de jogadores terem ido parar às urgências, com muitos a necessitarem mesmo de ventilação, a Sociedade Americana de Pediatria lançou um apelo aos jovens, em Abril de 2013, para que recusem participar no desafio. Este consiste em engolir uma colher cheia de canela em pó e aguentar um minuto sem beber água, o que costuma terminar numa explosão laranja, a lembrar o sopro de um dragão.

Apesar disso, este tipo de vídeos tem cada vez mais adeptos portugueses: o filme em que Rita acaba a vomitar a canela para um alguidar amarelo teve, em apenas um ano, quase 170 mil visualizações. No Youtube, quando se pesquisa com os termos ‘desafio da canela’, surgem actualmente perto de 55 mil vídeos de portugueses e brasileiros.

E nem as figuras públicas passam ao lado desta moda: no mês passado, um dos finalistas do reality show da TVI, Casa dos Segredos, colocou na sua página do Facebook um vídeo seu, a fazer o desafio. A adesão de Diogo Marcelino, de 23 anos, e a sua divulgação na rede social levantaram de imediato grande polémica, com vários comentários a alertar para os riscos e a criticar o exemplo dado aos fãs mais novos.

Também Rui Pêgo, 25 anos, apresentador do programa da SIC, Curto-Circuito, aderiu em Dezembro de 2012 à experiência, que atrai jovens cada vez mais novos.

Ricardo tinha 16 anos quando decidiu participar nesta brincadeira. Colocou uma cadeira no meio da cozinha em casa dos pais, no Montijo, e filmou-se a fazer este desafio. “Tinha consciência que poderia ser perigoso, por isso decidi não tentar engolir a canela”, conta ao SOL o jovem, hoje com 18 anos.

Pediatras admitem fazer estudo

Segundo os médicos, o maior perigo está em tentar engolir esta especiaria que é feita de casca de árvore. “Como é um pó, quando se tenta engolir, há o risco de se aspirar e isso pode provocar lesões e até causar asfixia”, alerta Libério Ribeiro, presidente da Sociedade Portuguesa de Alergologia Pediátrica, acrescentando que entre as possíveis consequências estão as pneumonias químicas: “E essas são difíceis de tratar, pois os antibióticos não actuam”.

No alerta que fez, a Sociedade Americana de Pediatria explicou que “a simples tentativa de engolir a canela pode causar asfixia, irritação da garganta e problemas respiratórios, podendo mesmo causar problemas graves nos pulmões”.

Como em Portugal a moda é recente, os hospitais ainda não têm dados. No entanto, Maria do Céu Machado, directora clínica do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, adianta que vai informar a sua equipa para estar atenta ao fenómeno. Já a presidente da secção de Medicina dos Adolescentes da Sociedade Portuguesa de Pediatria, Elisabete Santos, diz acreditar que o número de portugueses a fazer este desafio “irá crescer nos próximos tempos”. “Caso isso aconteça, a Sociedade irá realizar um estudo sobre o assunto a curto prazo”, revela.

Pressão dos amigos e gosto por testar limites

Segundo Tito Morais, fundador do site Miúdos Seguros na Net, o desafio da canela entrou em Portugal há cerca de dois anos, tendo agora “regressado”. “Este desafio, como outros, começa com uma infantilidade e transforma-se numa imbecilidade que até pode levar à morte” – avisa o especialista em segurança na internet, explicando que o jogo da canela está longe de ser um caso isolado entre os vídeos de risco.

Um dos mais recentes jogos perigosos e virais chama-se Necknomination (neck de pescoço e nomination de nomear). Os jovens filmam-se a beber álcool, partilham o vídeo na internet e, através das redes sociais, desafiam os amigos a fazerem o mesmo em 24 horas. No mês passado, no Reino Unido, cinco pessoas morreram depois de beberem grandes quantidades álcool forte ou misturas explosivas.

“Os jovens sofrem uma pressão dos pares e gostam de testar os limites”, lembra Cristina Ponte, professora da Universidade Nova de Lisboa e coordenadora do projecto UE Kids Online, que tem desenvolvido vários estudos sobre o uso que os adolescentes fazem da internet. “O Youtube é das coisas a que mais aderem”, diz a especialista, sublinhando que estes desafios são “preocupantes e têm elevado risco”.

A perita aproveita para lembrar que se associam os riscos da internet quase sempre apenas à pedofilia, quando há muitos outros, como é o caso destes jogos. “O Youtube é um mundo com coisas boas e más”, diz. Frisa, porém, que a maior parte dos adolescentes usa este site de vídeos essencialmente para carregar e descarregar músicas e filmes.

Segundo Cristina Ponte, os estudos têm revelado que os pais possuem pouca capacidade para controlar o que os filhos fazem online, por não terem ideia de como se faz e acharem que isso cabe às escolas.

O certo é que os últimos dados mostram que 80% dos jovens vai todos os dias à internet e revelam que os novos telemóveis estão a revolucionar a forma como os mais novos lidam com o mundo virtual. Neste momento, está a ser realizado em todo o país o primeiro estudo sobre o acesso dos jovens à net através dos smartphones, para se descobrir os novos hábitos (ver texto em cima).

‘Senti-me sufocar’

Uma das características que parece marcar os adolescentes é o desejo de se superarem uns aos outros. “Uma das características destes desafios é que implicam uma escalada que não pára: os desafiados têm de fazer algo mais espectacular do que os anteriores”, refere Tito Morais.

Ricardo, para quem o desafio da canela foi o mais engraçado que fez, admite que possa ter levado vários amigos a imitá-lo. Uma situação que não o preocupa: “Duvido que tenham corrido algum perigo, pois dos youtubers que conheço nenhum teve problemas depois de fazer este desafio”.

Já Rita, que mora em São Miguel, nos Açores, ficou com uma opinião diferente: “Jurei nunca mais voltar a fazer a mesma coisa. Senti-me sufocar. Era como se tivesse uma ‘papa’ colada à boca que me impossibilitava de engolir”. A jovem conta que o seu filme levou vários amigos a fazerem o mesmo, acrescentando que não tinha noção das consequências que podia ter para a saúde. “Após fazer o vídeo, várias pessoas, incluindo a minha mãe, chamaram-me a atenção para os riscos que corri”. Nunca mais repetiu e, depois disso, fez apenas o desafio da farinha e vinagre – que consiste em conseguir comer a papa que resulta da mistura dos dois ingredientes.

Mais experiente parece ser o jovem do Montijo, que é um dos campeões portugueses a colocar vídeos seus no Youtube. Já fez o desafio do chili (que consiste em comer uma malagueta picante), o desafio do gelo e do sal (fechar a mão com gelo e sal, até todo o gelo estar derretido) e o desafio de comer farinha com vinagre.

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