Diogo Infante dá corpo à ‘Ode Marítima’

Em palco está Diogo Infante, entre amarras. Sozinho, no cais deserto, naquela manhã de Verão, olha o rio e vê o paquete entrando. É a Ode Marítima, do heterónimo pessoano Álvaro de Campos, numa versão cénica dirigida por Natália Luiza, dita por Diogo Infante, que é acompanhado por João Gil à guitarra.

Foi há dois anos que os três se juntaram para ler o poema no Festival das Artes, em Coimbra, numa noite de lua cheia, onde sentiram algo de especial acontecer e, por isso, quiseram transformar a leitura num espectáculo, que se concretiza agora, no Teatro São Luiz, em Lisboa, até 16 de Março, estreando-se 100 anos depois de Fernando Pessoa ter criado o seu heterónimo Álvaro de Campos (Ode Marítima seria publicado um ano mais tarde) e no ano em que Diogo Infante comemora 25 anos de uma carreira onde já interpretou personagens como Hamlet e Salieri.

Mas o actor não está aqui a interpretar uma personagem, este homem não é Pessoa nem Álvaro de Campos. “É a suma de todos os homens. Em primeiro lugar, sou eu, porque não se trata de uma personagem mas de uma energia. É como se o meu corpo, a minha voz e as minhas emoções fossem um veículo para expressar esta transcendência emocional que abarca a dimensão humana. Ele somos todos nós: nas nossas contradições, medos, ânsias, desejo de sentir, de viver. É um poema que tem todas estas dimensões, que o tornam tão deliciosamente complexo, difícil e universal”, diz Diogo Infante.

Ao fim de 25 anos a trabalhar, Diogo Infante, que por mais míticas personagens que tenha feito nunca havia lido em palco poesia, diz que Ode Marítima foi um grande desafio devido à dificuldade do texto e à necessidade de atingir o equilíbrio entre o controle técnico e o descontrole emocional que conduz à catarse. “Nunca fiz nada assim na vida. Sinto-me um peixe fora de água, estou fora da minha zona de conforto. Mas deliciosamente vivo, estou muito atento a cada nova emoção que vou descobrindo”.

O actor está feliz com esta oportunidade que lhe foi dada em bodas de prata, de olhar para o património literário português e dar-lhe voz. “O Silva Melo dizia que o belo não precisa de justificação. Mas apesar da extraordinária beleza deste texto, ele é muito pertinente. Tem uma dimensão universal mas está aqui implícita uma epopeia marítima portuguesa, da nossa alma. E numa altura tão particular como a que estamos a viver, em que estamos atordoados, anestesiados, entorpecidos, amedrontados, o grito, a vontade desesperada deste homem de sentir alguma coisa é perfeitamente legítima. Subscrevo a necessidade de me espicaçar, de me violentar, para dizer ‘eu tenho que fazer alguma coisa, tenho que tomar uma posição’”. Por isso, o actor diz que aquilo que mais detestaria seria que alguém saísse da sala indiferente. “Se as pessoas se deixarem levar pela viagem, como eu faço, é quase impossível não sentir nada, não nos revermos nalgum momento do poema, que é tão forte, tão humano. Este homem vira-se ao contrário, expõe-se, põe as suas entranhas em cima da mesa, com tudo o que isso tem de horrível e escatológico mas ao mesmo tempo de belo, de enorme e profunda generosidade”.

rita.s.freire@sol.pt