Em Os Memoráveis volta ao 25 de Abril, tema de O Dia dos Prodígios. Ainda o vê como dia prodigioso?
Sim, quanto mais tempo passa mais sinto que houve ali uma espécie de grandioso intervalo em que as coisas confluíram para o sítio certo. Quando lemos os momentos da curva da História sabemos que tudo poderia ter explodido em violência. Mas tudo se dá numa espécie de ralenti, para que as coisas acontecessem com paz. Foi um dia prodigioso.
Porque quis regressar a este tema?
Qualquer pessoa da minha geração transporta consigo esse dia inaugural como o grande momento de esperança. Mas a memória vai apagando os traços. Quando as promessas sofrem um abanão tão grande como o que está a acontecer, é natural que a mitologia da esperança regresse ao sítio onde ela existiu. Hesitei escrever este livro, não queria recuar ao passado. Mas sonhava com isso quando outros também sonhavam. Eu é que não sabia. Quando o percebi, decidi não reprimir a minha vontade. Há dois anos, quando achava que a memória estava esquecida, tinha escrito umas páginas em que alguém diz a uma portuguesa que é preciso lembrar o que está esquecido e ela se recusa. Mas não sabia o que fazer com elas. Até que há um desafio do exterior: a canção que ela reprimia nessa história começou a ser cantada na rua. Comoveu-me. Era como se o que eu estava a engendrar outros estivessem a engendrar também. Então em Julho passado decidi-me.
‘Grândola’ fê-la escrever?
Sim. Há um potencial enorme na perspectiva da colectividade nessa canção, que tem uma grande força, porque remete para a ideia de que o poder vem do chão. Num momento em que há derivas internacionais poderosíssimas para que se criem oligarquias e poderes totalitários de vária natureza, de repente há quatro versinhos que cantam o oposto, que é o povo quem mais ordena. Não é uma bandeira de esquerda, é muito mais do que isso: é a ideia de que a humanidade ganhou uma dimensão diferente no séc. XIX e de que esse período não está ultrapassado. O receio é que haja um regresso. Por isso volta-se com tanta intensidade a algo que muitos julgavam enterrado.
Escreveu o livro em apenas seis meses…
Tinha-o na cabeça, escrevi-o de uma ponta à outra. Foi uma circunstância não literária. Não fui à procura de um tema, foi um tema que se impôs, o que conduziu à urgência. É um livro triste mas que celebra o 25 de Abril. É a minha celebração desse tempo.
E é sobre a memória, o correr do tempo. 40 anos são muitos anos?
Seria um tempo bom para se começar a esquecer se as circunstâncias não viessem lembrar. Há uma personagem que diz ‘Que bom será o dia quando não for necessário mais lembrar’. Teria sido uma altura boa para que os jovens pudessem dizer ‘Está longe, já não nos lembramos’. Significaria que tudo estava correndo bem, que havia uma proposta de futuro não contraditória. Mas há um cruzamento cínico entre o mundo civilizacional de uma potencialidade extraordinária na tecnologia, medicina e ciência e uma mesquinhez política que atravessa o jogo do mundo. O que ensombra os dias de hoje. Felizmente temos uma data que é um fermento, algo a que nos podemos agarrar e dizer que houve algo que correu bem. É tempo para lembrar.
Porquê jornalistas tão novos?
Para que não tivessem uma memória directa daquele tempo. Era importante que tivessem capacidade de admiração. Que pudessem ir ao encontro das figuras com um olhar ainda infantil, com capacidade de entusiasmo. E suficientemente vivos para exagerarem as qualidades e os defeitos e transformarem as figuras históricas em figuras de uma fantasmagoria que, em vez de virem do passado, viessem do futuro.
Algumas figuras são reais, outras fictícias. Não as nomeou, deu-lhes alcunhas. Porquê?
A alcunha é um elemento poético. Desvia do literal, cria uma distância, obriga a um segundo raciocínio. Dizer Salgueiro Maia fá-lo-ia mais pequeno. Charlie 8 torna-o mítico, engrandece-o, fica transformado em bronze. As alcunhas colocam-nos numa dimensão que não é a real. No romance não falamos da realidade, falamos de elementos irreais para irmos à procura da realidade. A história e a memória vão fechar o assunto. Mas a arte pode deixá-lo em aberto. A arte tenta deixar uma coisa viva para os novos. Pus em epígrafe uma frase que vi num tapume: ‘Desculpem não nos encontrarmos nestas ruas. Só nasceremos amanhã’. O livro é para os que só nascerão amanhã.
Apesar das alcunhas vislumbramos Otelo, Salgueiro Maia… Porque não criar só figuras ficcionais?
Porque as nossas são fortíssimas, não era possível fugir delas, são de uma atracção extraordinária. Alguém que, por instinto, com um murro na mesa evita uma guerra civil, e depois segue a sua vida pacata, fica com o peso do acto sobre si. O que fazer com o hiperprotagonismo? Há os que não querem aparecer, considerando que se cumpriram. E há os que à viva força querem ter feito mais do que fizeram. Não fui à procura desses, procurei os do primeiro caso, gosto mais dos que ficaram entortados, que apanharam sem saber de onde. Os que na democracia não triunfaram e se submeteram a uma vida comum.
Os jornalistas descobrem a verdade para depois a apagar. Porquê?
A realidade é densa e contraditória. Se queremos salvar alguma coisa, deixar uma coisa boa para o futuro, talvez a história tenha que ser ultrapassada. A mitologia e a arte talvez possam ajudar a empurrar o destino. A arte é salvadora, pode metamorfosear a contradição e transformá-la em beleza. É uma oferta salvadora.
Parte de uma fotografia, tirada no Verão Quente. Porquê?
É o momento em que todas as utopias estão na rua, das mais conservadoras, às mais progressistas, às mais falaciosas. Lisboa tornou-se uma espécie de manicómio, ainda com a frescura dos que querem manter o 25 de Abril. Mas as tentações para as várias derivas estão todas aí. Não escolhi o dia 21 de Agosto por acaso, foi um dia importante, com três forças fundamentais em disputa: a extrema-esquerda, as forças do Partido Comunista e os chamados moderados. Havia uma perspectiva de consórcio de esquerda que não se realizou. E ficaram feridas até hoje.
O final é uma nota de esperança?
Escolher de cada personagem a frase mais positiva é um sinal de que se quer construir alguma coisa. Estou optimista. Acredito que virá uma nova canção para que os jovens não fiquem apenas com a que foi nossa. Hão-de encontrar a sua. Hão-de nos esquecer mas seguir um caminho de quem quer desenvolvimento em liberdade e em fraternidade.