Perseguidos pelo traje

É a noite do estudante e as ruas de Santos, em Lisboa, já estão cheias de jovens a beber cerveja. Maria e um grupo de amigos da faculdade entram num dos bares da zona, enrolados nas capas negras do traje académico que os protegem do frio. A reacção é imediata: “Olha! Estes devem ir todos…

Desde a tragédia que vitimou seis alunos da Universidade Lusófona na praia do Meco, a 15 de Dezembro passado, quem veste o traje académico arrisca-se a ouvir insultos e provocações. Há estudantes de todo o país a queixarem-se às academias por, cada vez mais, estarem sujeitos a comentários grosseiros apenas por andarem trajados. E há até professores a aconselhar alunos a não vestirem o fato nas aulas.

Para Maria, que nessa quinta-feira à noite voltou a reunir-se com os colegas da Escola Superior de Educação Almeida Garrett (ESAG), após as mini-férias de Carnaval, comentários como este já não são uma surpresa.

“Numa outra noite em que saíamos trajados, fartamo-nos de ouvir ‘bocas’ como ‘cuidado com a onda’ e outras do mesmo género” – lamenta a jovem, que frequenta o 2.º ano do curso de Educação Básica naquela universidade privada da capital. “Sempre vesti o traje e não pertenço à comissão de praxes ou à associação académica, mas as pessoas agora metem tudo no mesmo saco”, desabafa.

Regras rígidas

Dentro do bar, em Santos, o grupo de amigos, entre os 19 e os 27 anos, finge não ouvir os comentários. Está calor e as seis raparigas e o rapaz tiram as capas, que deixam dobradas sob um banco. Todos mantêm a gravata preta e o colarinho da camisa branca apertado mesmo enquanto dançam, animados, no meio do espaço, entre outros jovens, com t-shirt e tops. Estão contentes por estarem novamente juntos: conversam, riem, fazem brindes, abraçam-se. E registam, com fotografias tiradas com os telemóveis, os momentos mais divertidos da noite.

Conheceram-se no ano anterior, durante as praxes da universidade, e são hoje um grupo unido. “As nossas praxes nada têm de violento. Foi graças a elas que ficámos amigos”, assegura Clara, que hoje adora usar o traje que ao princípio considerava incómodo.

“Simboliza o estudante universitário e, quando o vestimos, tentamos honrá-lo com o nosso comportamento”, conta Maria, defendendo que o uso do fato deve implicar um comportamento exemplar, onde qualquer tipo de violência não tem lugar.

Vestir o traje – saia ou calças, colete e gravata (para os homens), casaco tipo blaser, capa e sapatos (no caso delas, o salto não excede os cinco centímetros) – obedece também a regras rigorosas. Desde a forma de fechar o casaco (os solteiros só abotoam os dois botões de cima) ao traçar da capa, tudo está pré-definido. Até o uso de brincos ou de verniz de cores nas unhas está proibido em certas faculdades.

Também os emblemas e pins na capa seguem indicações precisas: os símbolos são colocados em filas ímpares e numa ordem predefinida: primeiro, a bandeira de Portugal, depois a da União Europeia e só a seguir o brasão da cidade onde se estuda e o símbolo do curso ou da faculdade. O objectivo de tantas regras é simples: ao andarem todos de igual, esbatem-se as diferenças entre os estudantes, explica o grupo.

O traje negro só é estreado quase no final do 1.º ano do curso, depois da cerimónia do enterro dos caloiros e do baptismo da capa, com vinho ou cerveja. Nesta altura, a capa não pode ser usada ao pescoço: é dobrada e transportada caída, sob o braço esquerdo.

“A partir da segunda matrícula é que já podemos usar a capa pelas costas”, acrescenta Paula, lembrando que é dobrada sobre os ombros, consoante o número de matrículas. De dia, a capa negra é posta sobre o ombro esquerdo e à noite tem de ser colocada de forma a não se ver o branco da camisa. E é assim, todo enrolado, que o grupo volta à rua, caminhando até ao próximo bar. Um percurso de metros marcado por nova provocação: “Vocês são de onde? Da Lusófona?”, ouve-se do outro lado do passeio.

Queixas em todo o país

O presidente da Associação Académica de Lisboa admite que casos como este se tornaram comuns à medida que se adensaram as suspeitas de que os seis jovens engolidos por uma onda no Meco estavam na praia a cumprir um duro ritual de praxe imposto pelo sobrevivente, o dux da Lusófona.

“Tem havido várias queixas de situações de insulto gratuito a estudantes trajados”, denuncia Marcelo Fonseca, considerando que “a sociedade civil não vê hoje com bons olhos as praxes académicas, a que o traje está associado”.

Maria diz que só se apercebeu deste impacto quando, em Fevereiro passado, voltou a vestir-se a rigor para sair com os colegas, tal como acontece sempre que têm jantares da faculdade. “Nessa noite, cruzámo-nos com estudantes da Lusófona. Viram-nos trajados e vieram ter connosco para nos dar os parabéns pela coragem. Eles vinham vestidos normalmente”, recorda.

O mal-estar é sentido um pouco por todo o país. “Colocaram um rótulo a todos os trajados”, diz o presidente da Federação Académica do Porto, Rúben Alves, explicando que várias associações de estudantes reportaram casos como estes. “Usar o traje passou a ser sinónimo de abusos e praxes violentas”.

A maioria das situações foi denunciada à estrutura no final de Janeiro, nos encontros que antecederam a reunião com o ministro da Educação, Nuno Crato, que convocou alunos, reitores e universidades para pôr fim às praxes violentas. Mas até agora não foram divulgados quaisquer resultados práticos dessas reuniões, apesar de universidades como a de Aveiro terem endurecido as regras – informando os alunos de que passa a ser proibido pôr os caloiros a rastejar, dar as mãos ou ter qualquer contacto de cariz sexual.

“Continuamos à espera de ser chamados ao Ministério”, diz Rúben Alves, lamentando que haja uma “pressão social” para acabar com todo o tipo de praxes e não apenas com as violentas, ou para que os alunos deixem de usar o traje académico.

Na Universidade do Minho, a pressão sente-se dentro da instituição e chega até de professores. “Tivemos conhecimento de vários alunos que estavam trajados nas aulas e foram aconselhados pelos docentes a não o fazerem”, denuncia o presidente da Associação Académica do Minho, Carlos Videira. “Os docentes entendem que o seu uso não é dignificante e que devem evitar vestir o traje na aula”.

Associação apela à denúncia

O caso causou polémica e levou a associação a fazer, no mês passado, um comunicado onde, além de condenar a praxe violenta, faz uma defesa “intransigente” do direito ao uso do traje nas actividades académicas, lembrando que este está associado ao “orgulho de pertença à Academia”. A estrutura apela ainda “aos estudantes que denunciem qualquer juízo de valor ou acção discriminatória por docentes e não docentes a este respeito”.

O reitor, António Cunha, também defendeu, no dia da universidade, que os alunos devem continuar a honrar a faculdade, “especialmente quando vestem o traje académico que a universidade reconhece e acolhe no seu protocolo”.

Para Maria e os colegas da ESAG, não será a pressão social que lhes vai alterar os hábitos. “Não vamos deixar os nossos trajes no armário, nem deixar de viver as nossas vidas da mesma maneira por causa da tragédia do Meco”, garante.

joana.f.costa@sol.pt