O susto acabou por ser o momento decisivo que ditou que Paulo Gonçalves, fundador, compositor e guitarrista dos Heróis do Mar, se voltasse a aproximar da música. “A única coisa que podia fazer era estar sentado em casa. Recomecei a tocar e, não sei porquê, comecei a tocar músicas portuguesas”.
Na mesma altura, o musicólogo norte-americano Michael Arnold, que preparava um estudo sobre o neo-fado e o neo-flamenco, abordou-o para recordar os Ovelha Negra, um projecto de fado electrónico criado por Paulo Gonçalves e que tinha no currículo um único álbum, editado em 1998 – altura em que o músico se afastou destas lides.
Estava lançada a semente para que Paulo Gonçalves se reaproximasse da música. Juntou músicos que já tinham colaborado consigo no passado e assim começou a nascer Ilumina, que viria a ser o segundo álbum dos Ovelha Negra, lançado em 2012. “E que em Portugal foi totalmente ignorado”, diz.
A história foi recordada durante a passagem de Paulo Gonçalves por Lisboa. O músico foi um dos convidados para a conferência Fast Talks About Fashion, na 42.ª edição da ModaLisboa. Isto porque, nos últimos anos – os mesmos em que andou de costas voltadas para a música –, se tem dedicado a trabalhar com roupa vintage. “Sempre gostei de roupa, mas nunca pensei trabalhar na área. Desde os cinco anos que quis ser músico. A música é o meu amor, a roupa é um passatempo”. Mas é um passatempo que se tornou sério, sobretudo quando se mudou para Londres pela primeira vez.
“Fui para Londres com os LX-90, no início dos anos 90. Tínhamos um contrato para distribuição mundial e tinha recebido um grande avanço em royalties. Mas pensei que tinha de arranjar trabalho porque estava a gastar o dinheiro e um dia ia acabar. Ia muito ao mercado de Portobello e, em 1995, conheci um sujeito que vendia roupa vintage e me convidou para trabalhar com ele. Aprendi tudo com ele”. Especializou-se na chamada gentlemen clothing, ou seja, “Savile Row, tweed escocês, roupa de caça, tiro e de andar a cavalo”. Mas a música esteve sempre presente, mesmo que subliminarmente: “Fui sempre acompanhando tudo o que aparecia de roupa relacionada com pop, rock…”.
Acabou por abrir uma loja própria, a The King & Queen of Bethnal Green, em conjunto com uma sócia. A loja tornou-se um sucesso e chegou mesmo a receber o título, na revista Time Out, de uma das cinco lojas vintage mais importantes de Londres. Além disto, somava clientes conhecidos na área da moda, como Tommy Hilfiger, Ralph Lauren, Armani, Gucci… “Tanto os criadores como lojas como a H&M têm equipas sempre em busca de inspiração que, entre outras coisas, compram peças vintage para os seus arquivos. Podem comprar uma peça por causa de um estampado, um botão, um cinto…”.
As outras áreas que também o procuravam eram o cinema e justamente a música, a tal paixão que continuava adormecida. O guarda-roupa da tournée Earthling de 1997 de David Bowie, por exemplo, tinha dedo português. “Foi um mero acaso.
Uma mulher veio ter comigo, era cabeleireira, estilista e namorada do guitarrista, mas no início nem percebi quem era e pensava que ela queria roupa para uma produção de moda. Depois é que ela me disse que era para o David Bowie. Ele acabou por querer ainda mais peças e eu fui entregar ao Hanover Grand, em Londres, onde ele estava a fazer um espectáculo, e estivemos no camarim à conversa. Mas em Londres não é nada do outro mundo ver a Kate Moss ou o David Bowie”.
Em 2008, porém, a sócia mudou-se para Bali e Paulo fechou a loja. Ainda assim, continuou a trabalhar com roupa: “Compro, vendo e alugo vintage a outras lojas, a marcas, a coleccionadores e em Portobello”. E continua a trabalhar com grandes casas de moda, músicos e produções cinematográficas. O grande desafio da sua vida é bem recente. “Em 2011, tive de encontrar 200 suspensórios de botão para os actores secundários do Hugo, do Scorsese”.
Regressar à música
Paulo Gonçalves cresceu no Canadá e foi ali que despertou para a música, no clube cultural português criado pelo pai. “Ele levava artistas portugueses para cantarem em Toronto e quando eles saíam do palco eu subia, de mãos nos bolsos, e punha-me a cantar”. Paulo diz que sempre teve “a mania da música”. Sonhava aprender a tocar guitarra, mas o pai era contra o rock e durante cinco anos obrigou-o a aprender violino. “Foi uma seca. Depois disso aprendi acordeão e piano, até que a minha mãe me ofereceu uma guitarra”.
Depois de algumas bandas de escola no Canadá, a família regressou a Portugal quando Paulo tinha 19 anos. O músico esteve um ano num colégio interno em Viseu onde depressa constituiu mais uma banda. “Tocámos na feira de Viseu. Foi a primeira vez que me pagaram para tocar”.
No final dos anos 70 passou por projectos como os Faíscas e os Corpo Diplomático. Foi, aliás, daqui que nasceram os Heróis do Mar, em Março de 1981, formados por Pedro Ayres de Magalhães, Paulo Gonçalves e Carlos Maria Trindade (todos ex-Corpo Diplomático), António José de Almeida (baterista dos Tantra) e Rui Pregal da Cunha, que se estreava nas lides da música. Em Outubro de 1981 é lançado o primeiro trabalho, Heróis do Mar, com os temas ‘Saudade’ e ‘Brava Dança dos Heróis’. Em Junho de 1982 sai o tema ’Amor’, que se tornaria um sucesso.
A estética, quer musical quer visual, num momento em que a memória do Estado Novo ainda estava bem viva na memória dos portugueses, apontou os holofotes sobre os Heróis do Mar e levantou inúmeras polémicas e o colectivo chegou a ser acusado de fascista. “A seguir ao 25 de Abril havia vergonha em ser português e nós conseguimos trazer força, orgulho, esperança e identidade de volta a Portugal. Levámos espectáculos a localidades onde nem sequer havia electricidade, fomos a primeira banda a ser convidada para tocar em Paris”, contraria Paulo.
O sentimento de que já não conseguiam ir mais além ditou o fim da banda em 1990. Ficam as memórias, mas saudades… “Nem um pouco!”. Ainda assim, Paulo assume que gostava de ver os Heróis do Mar reunidos para um concerto – como chegou a estar anunciado em 2013. “Cheguei a ir rever tudo porque havia músicas das quais já nem me lembrava. Fiquei emocionado. Gostava de ver os Heróis voltarem a subir ao palco, mas não depende só de mim”.
Depois dos Heróis do Mar Paulo Gonçalves fundou, em conjunto com Rui Pregal da Cunha, os LX-90, cujo primeiro álbum, 1 Revolução por Minuto, chamou a atenção do mercado estrangeiro e os levou para Londres no início dos anos 90 (onde entretanto alteraram o nome da banda para Kick Out The Jams). Mas a experiência acabou por ser bem diferente das expectativas. “Éramos portugueses e chegámos na altura da brit pop… Além disto tivemos problemas com bateristas e, quando finalmente acertámos, e as coisas começaram a correr bem, o baterista disse que afinal não gostava do som da banda. Chateei-me e fui-me embora”. Ainda fez alguns concertos com bandas locais e, em Portugal, gravou com os Ovelha Negra, mas acabou por arrumar a guitarra e desistir da música.
Foi também nesta altura que voltou a Portugal e, juntamente com a mulher, abriu a loja de roupa Crucifixo, com artigos que trazia de Londres. Pouco depois, porém, a loja fechou. Quando se preparava para regressar a Londres, o então sogro fez-lhe uma proposta inusitada: que fosse para a Escócia trabalhar numa plataforma petrolífera de que era proprietário. “Fui, mas aquilo não tinha nada a ver comigo. Eram condições muito agrestes, o Mar do Norte é muito frio, se caímos não há salvação possível”. Voltou para Londres onde passou a dedicar-se em exclusivo à roupa vintage.
O regresso à música só aconteceu em 2010, com a tal infecção no ouvido. Agora, está a trabalhar num novo álbum, em inglês, feito com os mesmos músicos ingleses com os quais gravou o segundo álbum de Ovelha Negra. Além disso, está a trabalhar numa peça musical em português. Mais de 30 anos depois do nascimento dos Heróis do Mar, Paulo Gonçalves quer voltar a fazer da música o seu fado.