Do fim da História à vingança da Geografia

No domingo, a Crimeia declarou-se unilateralmente independente da Ucrânia por referendo. É mais uma alteração de fronteiras.

Para ‘fim da História’ não está mal… Ou, citando Robert D. Kaplan, é mais uma “vingança da Geografia”. Porque não se trata de uma daquelas remotas heranças do ‘Grande Jogo’ do século XIX, como o Afeganistão, ou das partilhas pós-guerra do Império turco, como o Iraque. Ou então de uma Somália, de uma RDC, de um desses Estados saídos do imperialismo colonial e deixados órfãos pelo fim da Guerra Fria.

Não. Estamos a falar da Europa, da fronteira da Mitteleuropa, de terras, de cidades, de povos cristianizados, que seguiram os rumos da evolução política europeia, da Idade Média ao Estado Constitucional, no século XIX. E que estão aqui no Continente vizinho, com os 27 da UE e com a NATO.

A crise desencadeada pela prolongada tensão em Kiev, pela queda do Presidente pró-russo, pela retaliação de Moscovo na Crimeia, concretizada pelo referendo de 16 de Março, trouxe um perigoso vento de realismo e de tragédia. Mas só agora os ocidentais parecem perceber que jogaram um jogo perigoso ao tratarem um conflito geopolítico e de poder nacional como se fosse um mero conflito comercial ou aduaneiro: primeiro protelando e dificultando a aproximação de Kiev à União, depois, quando Putin jogou forte, desafiando-o, no seu projecto euro-asiático; e, bem pior, no sentimento de segurança da Nova Rússia.

Esta Rússia que carrega alguns síndromas contraditórios e perigosos, e tanto mais perigosos quanto mais contraditórios. Primeiro, um sentimento de humilhação e nostalgia do poder nacional e internacional da desaparecida União Soviética: o comunismo está morto e enterrado na Rússia, cujo povo foi a sua grande vítima, mas a memória do poder da URSS no mundo vive na nostalgia dos humilhados dos anos 90 e no tempo de Ieltsin. A este sentimento de perda somou-se a sensação de vulnerabilidade, quando os americanos vencedores empurraram a NATO para as portas ocidentais da Rússia. E agora, no meio da euforia de restauração e renascimento do poder nacional, que as receitas energéticas e o poder militar garantiam, a perda da Ucrânia parece irreparável.

Washington e Bruxelas jogaram levianamente com uma extensão de garantias a Kiev ou aos pró-ocidentais de Kiev que agora não podem nem querem cumprir. Para já, recorrem, contra uma política ditada pela geopolítica e pela força, com a ameaça de sanções económicas. Que traz perdas cruzadas, dos interesses russos na economia ocidental e dos interesses ocidentais na economia russa, entregues à fuga acelerada de capitais.

Mas no fim todos perdem. Sobretudo os ucranianos, que mais uma vez pagam por estar entre dois mundos, entre a leviandade do Ocidente e o realismo brutal do Leste.