“Algures em 1999. O José Medeiros Ferreira é um dos espíritos mais argutos que conheço. Gosto sempre de o encontrar. O seu fino humor, a ironia servem uma capacidade única para perscrutar a história, compreendendo-a. Encontrei-o. Conversámos longamente. Falámos da Europa. O tema acontece-nos amiúde. Preocupa-nos a lógica burocrática que alimenta debates ocos. Ele compreende como este velho continente está cheio de fantasmas contraditórios.
Veio à baila a estranha origem da Guerra de 14-18 – para o que nos haveria de dar… Os comentadores mais prestigiados desse tempo enganaram-se redondamente sobre o que veio a acontecer. Medeiros Ferreira tinha a certeza de que, se vivesse nessa altura, não se teria deixado enganar. Nos textos antigos havia longas justificações sobre o facto de a guerra não ser provável. E se houvesse conflito seria fugaz. Lembrámo-nos da inocência do Presidente Hoover, na década seguinte, a descrer dos efeitos de uma depressão económica duradoura. A felicidade estaria ao virar da esquina… E, no entanto, o que se encontrou foi um longo pesadelo.
“Também agora a Europa parece caminhar cegamente para a fragmentação” – diz-me. Falta tudo aquilo de que precisamos enquanto maquinaria democrática. Não temos união económica a sério. Não temos união política. O anão político é cada vez mais irrelevante. Tudo isto é muito perigoso, sobretudo quando não sabemos lidar com a questão russa. Depois de 1989 julgou-se que a guerra fria iria acabar e que viria a vitória do mítico Ocidente. Puro engano. O orçamento comunitário é ridículo de insuficiente. “Estou para ver quando vier a primeira crise…”. A coesão económica e social é uma quimera. Os fundos comunitários são oportunidade para se fazerem negócios sem redistribuir melhor rendimentos e favorecer a inovação e a criatividade.
Sinto que José Medeiros Ferreira está incomodado. Sabe melhor que ninguém que o Estado-nação está a mudar, continuando a ser relevante. Seria trágico pensar que o Estado-nação desapareceu, substituído pelo tribalismo populista, agressivo e irresponsável. Portugal, apesar de tudo, é uma realidade singular. Dizia Rougemont (suíço de Neuchâtel) que somos um Estado-nação paradigmático. O meu interlocutor conhece bem o Parlamento Europeu. Sabe da sua legitimidade incompleta. É uma Câmara de boas intenções, com pouco poder prático.
Pausadamente, Medeiros Ferreira lembra 1977 e o pedido de adesão às Comunidades Europeias. Por momentos, recordo o dia em que nos conhecemos, na Assembleia Constituinte, quando o jovem deputado, da geração de 62, prolegómeno decisivo da revolução de 74, defendia que houvesse debate político antes da ordem do dia numa Câmara democrática e não meramente técnica. Era a democracia que estava em causa. Nunca a democracia está completa ou perfeita. Não por acaso, compreendeu bem, antes de tantos outros, o papel dos militares na transição do regime. Voltando aos Negócios Estrangeiros, ‘Europa Connosco’ (bandeira de Mário Soares) traduz o binómio essencial Europa e Democracia. É o código genético da democracia que importa aperfeiçoar.
Com entusiasmo, Medeiros Ferreira, usa palavras certeiras. Como poderá funcionar a Europa sem vontade política, sem defesa supranacional, sem orçamento que se veja e sem parlamento bicamaral? É preciso um Senado com representação igualitária de todos os Estados, e não um Conselho Europeu intergovernamental e fraco.
Estivemos ali, horas esquecidas. Lembrámos Garrett e Antero. Fomos até aos bravos do Mindelo. Num ápice, quisemos desfazer ilusões. Talvez a Europa possa ter saída, em havendo nervo e vontade…”.