No tempo das macieiras

Quando Luiz Ruffato nasceu, em 1961, em Minas Gerais, nada indicava que viria a tornar-se um escritor respeitado mundo fora. Filho de uma lavadeira e de um pipoqueiro, o destino parecia traçado para que seguisse as pisadas do pai. “Fiz um trajecto pessoal dentro da sociedade brasileira absolutamente inusitado. Por ter nascido numa família muito…

Esta foi uma das histórias partilhadas na quarta edição do Festival Literário da Madeira, promovido pela editora Nova Delphi, que entre 18 e 22 de Março levou até ao Funchal três dezenas de escritores. Sob o tema Queria de Ti um País (de Mário Cesariny), os 40 anos do 25 de Abril, a revolução e a política marcaram esta edição desde a abertura. Em conversa com Paula Moura Pinheiro, Irene Flunser Pimentel lembrou o que sentiu ao deixar a política militante, em 1978, fazendo uma ponte com a actualidade. “Senti-me vazia. estava livre e não sabia o que fazer com essa liberdade. Não estou contente com a situação de Portugal, da Europa, do mundo. Mas dei por mim de novo a entusiasmar-me com a busca de alternativas”. A historiadora, que se assumiu como social-democrata, afirmou que o 25 de Abril foi o dia mais feliz da sua vida e salientou que a grande revolução foi a criação do Estado Providência, que vê ameaçado. “Dizer que o direito à saúde e o direito à educação são direitos humanos foi revolucionário. E essa universalização chegou com o 25 de Abril”.

E como não foi apenas por cá que se viveram ditaduras, os campos de concentração foram tema de uma conversa entre Miguel Real, João de Melo, Francisco Camacho e Tiago Salazar. Miguel Real comparou os lares de terceira idade a campos de concentração para onde se vai para morrer; João de Melo lembrou a guerra em Angola e Francisco Camacho a dos Balcãs. Na sexta-feira, dia mundial da poesia, os poetas e a sua arte estiveram em destaque, tendo subido ao palco Jorge Sousa Braga, Diogo Vaz Pinto e Golgona Anghel, entre outros.

Mas foi no sábado, 22, que o teatro se encheu de cravos vermelhos para comemorar a Revolução. De manhã, Ana Margarida Carvalho, João Tordo, Carlos Quiroga e Valério Romão juntaram-se para uma conversa em torno do mote ‘homens que são como lugares mal situados’, na qual Ana Margarida Carvalho lembrou o filme Stardust Memories, de Woody Allen, no qual um realizador está numa carruagem de comboio deprimente: “Do outro lado da linha pára outro comboio, e ele vê o interior festivo da outra carruagem, com música, champanhe, até a Sharon Stone. E percebe que está no comboio errado. Tenta correr mas o outro já vai em andamento. É tramado apanharmos um comboio errado e passarmos o tempo à espera de um outro comboio. Podem dizer-me que não estamos à espera de comboio nenhum e que aqui na Madeira não há comboios mas eu digo: isso pensam vocês, estamos sempre todos à espera de um comboio”.

À tarde, o Teatro Baltazar Dias esgotou-se com quase quatro centenas de pessoas para ouvir Ricardo Araújo Pereira, Raquel Varela, José Eduardo Agualusa e Jorge Sousa Braga conversarem sobre o tema Todos os Revolucionários São Estúpidos (de Bernardo Soares). Agualusa falou sobre Angola e os problemas que o país enfrenta. Jorge Sousa Braga, salientando que tão importantes como as grandes revoluções são as pequenas revoluções do nosso quotidiano, leu o seu poema A Revolução das Flores. Mas foram Raquel Varela e Ricardo Araújo Pereira que galvanizaram a plateia. A historiadora, que contou histórias de revoluções, salientou: “Todos os revolucionários são estúpidos… Alguns são. A estupidez é democrática. Mas os revolucionários distinguem-se por não se enganarem a si próprios: sabem que o mundo não se muda sozinho”.

Já o humorista, que agradeceu àqueles que fizeram o 25 de Abril, não deixou de notar a improbabilidade do feito. “Não gosto de militares. E embora goste do povo enquanto conceito abstracto, tenho menos apreço pela sua demonstração prática enquanto pessoas que se aglomeram em torno de acidentes, ou que se juntam para insultar os arguidos que vão ao tribunal ou que votam em massa no Cavaco. Mas o 25 de Abril foi feito pelos militares e pelo povo. Às vezes acontece um casal muito feio dar um filho muito bonito”.

Não esquecendo o mote da conversa e falando sobre revolucionários, Ricardo Araújo Pereira salientou que desistir parece mais ajuizado que interferir. “Aleija menos. E tem-se menos desilusões no sofá do que indo para a rua empenhado em alterar as coisas”. Mas recordou o momento em que, vendo um cartaz exortando os estrangeiros a sair de Portugal e apelando ao nacionalismo, se juntou aos outros Gato Fedorento e perguntou a um advogado a quanto poderia ascender a multa por colocar outro cartaz ao lado. “Cinco mil euros. Era uma piada um bocado cara. Mas valia a pena. Pusemos um cartaz ao lado que em vez de ter um avião a descolar tinha um a aterrar e dizia ‘venham mais estrangeiros, só com portugueses não vamos lá’“. Foram contactados pela imprensa, que queria saber se aquilo era um movimento cívico. Disseram que era uma piada. O jornal publicou que era só uma piada. “Nunca disse só uma piada. Seria como dizer que entre D. Pedro e D. Inês era só amor ou que entre 1939 e 1945 foi só uma guerra. Há coisas que não consigo combater. A comédia serve para, reconhecendo essa impotência, tornar a derrota um bocado mais doce”.

Ou seja, o humor não faz revoluções. “Um revolucionário que viveu na Galileia há 2014 anos disse: ‘Os missionários são o sal da terra’. Isto é, impedem que a terra se corrompa (hoje diria que ‘Os missionários são a pasteurização da terra’). Sempre achei que os humoristas são os orégãos da terra: não só não impedem a corrupção como preferem que a corrupção exista, senão não têm nada de que falar. Sou os orégãos, aquele que, não impedindo a corrupção, lhe dá só um saborzinho, para escorregar mais facilmente”.

Surpreendentemente, o Padre Anselmo Borges subiu ao palco para apresentar Vagina, o livro de Naomi Woolf (uma das convidadas do ano passado do festival), aproveitando para defender a igualdade de género e a urgência em acabar com o papel submisso e reprodutivo das mulheres, para o qual, reconheceu, a Igreja Católica tem contribuído. Em conversa com Luís Caetano sobre o seu último livro, Atlas do Corpo e da Mente, Gonçalo M. Tavares defendeu: “Não se deve mudar as referências [como a Constituição] num momento de crise, só num momento de calma. As referências são o sólido para o qual, no meio de um naufrágio, estendemos a mão, sabendo que vamos encontrar algo que não treme. É um absurdo em qualquer momento de crise querer mudar as referências. Tal como é um absurdo, em momentos de tranquilidade, não pensarmos se as referências podem ser afinadas”. O autor, que afirmou sentir-se bem na Europa devido às suas leis, salientou que deveriam analisar-se as mudanças de lei no velho continente de 2008 a 2014. “As democracias europeias não vão colapsar pelas metralhadoras mas pelas mudanças de leis. Se fizermos a contabilidade destes seis anos, as leis europeias em 2014 são menos humanistas do que eram em 2008. Isso é perigoso. As leis são coisas para manter, só se devem mudar se for para uma melhoria consistente. Quando uma lei é mudada no espaço de um ou dois anos, há algo de anárquico. As ditaduras vivem das mudanças rapidíssimas de lei”.

O escritor criticou também o pensamento actual, preso às notícias emitidas na televisão, dizendo que basta entrar num café para se perceber que falamos todos sobre os mesmos temas. “A literatura pode dar um passo atrás. Quando uma pessoa escolhe um livro está a decidir no que vai pensar. Mas numa crise económica há uma desvalorização total da cultura. A leitura foi associada a uma actividade inútil. Quando a pessoa termina de ler um livro não recebe mil euros. A pobreza é uma urgência de tempo enorme”. E Gonçalo M. Tavares deu o exemplo de uma pessoa pobre, que tenha seis filhos e uma macieira com quatro maçãs. “Se alguém chegar e disser: ‘Dou-te sete maçãs pela tua macieira’ o que é que faz a pobreza? Vende. A pobreza não tem tempo para esperar que a macieira dê 700 maçãs. O problema de vendermos as macieiras é que comemos sete maçãs mas, no dia seguinte, não há maçãs. Era interessante ver a transferência colectiva e individual de macieiras, de 2008 a 2014. A crise económica é algo em que o tempo desaparece: quem não ganha dinheiro de imediato passa a entrar no campo das actividades absurdas. Onde se insere a cultura”. Mas de cravos vermelhos na mão, ao abandonar o teatro, no fim de mais um festival, ninguém se sentia inútil. Nem considerou o tempo ali passado um absurdo.

rita.s.freire@sol.pt