Cristiana tinha terminado o curso de Media Studies, na Universidade de Westminster, em Londres, e depois de algumas breves – mas marcantes – experiências de trabalho, tinha o seu primeiro emprego: era recepcionista de uma produtora de publicidade e vídeo, a Knucklehead. Sempre com o cinema em mente, dez meses depois de ter começado a trabalhar, Cristiana teve a sua oportunidade quando a produtora foi contactada pelo Discovery Channel para que apresentasse ideias para mini-documentários de três minutos.
Fascinada pela figura, à data ainda muito obscura, de Dita Von Teese, e espicaçada pelos chefes, apresentou a proposta: um documentário sobre a vida da rainha do burlesco. “Tenho um fascínio genuíno por ela. Ela não é uma stripper. É uma mulher interessante, com uma mentalidade incrível e um exemplo de feminismo. Apresentei a proposta e o Discovery Channel aceitou de imediato. Acho que foi o momento perfeito. Ela ainda era underground, mas tinha acabado de se casar com o Marilyn Manson e sentia-se que ia explodir a qualquer momento. E a verdade é que, ainda antes de sair o documentário, o Jonathan Ross [apresentador do talk-show Friday Night With Jonathan Ross, na BBC1] pediu para o exibir no seu programa. De seguida ela foi capa da Vogue norte-americana e tornou-se a Dita como a conhecemos”.
De repente, aos 22 anos, Cristiana Miranda tinha feito a sua estreia como realizadora. E com um filme que foi visto por seis milhões de pessoas em todo o mundo.
Nascida em Lisboa e criada no Estoril, as recordações de infância mais fortes de Cristiana passam-se na estrada. Os pais sempre adoraram viajar de carro e passaram esse gosto a Cristiana e ao irmão. “Lembro-me de, aos sete anos, termos ido de carro até à Noruega. Foi uma viagem que me marcou muito, sobretudo pormenores como chegar à Alemanha e ir ao primeiro McDonald’s, e chegar à Holanda e achar que era o país mais civilizado que já tinha visitado porque tinha auto-estradas para bicicletas”. Sem se aperceber, começava a formar-se uma certa maneira de olhar o mundo. “Hoje acho que passar horas a ver paisagens me influenciou muito. E a verdade é que ainda hoje conduzo horas. Estar na estrada permite-me desligar e pensar no essencial”.
Filha de empresários – o pai na área dos brindes e a mãe na área da moda – habituou-se a que estas viagens em família tivessem também outra componente: “Ia muitas vezes com a minha mãe a Paris comprar roupa que ela depois vendia em Portugal. Experimentava tudo”, recorda, ao mesmo tempo que explica ter nascido aí o seu fascínio pela moda e, sobretudo, pelas imagens de moda. Apaixonada por fotografia de moda, em particular pelo trabalho de Richard Avedon, gravava todos os desfiles que passavam na televisão e desde os 12 anos que colecciona revistas de moda – da Elle portuguesa à Vogue inglesa, tem um pouco de tudo. “A minha amiga Erin O’Connor estava a comentar que tinha imensa pena de não ter uma data de editoriais que tinha feito ao longo da sua carreira. Respondi-lhe logo: ‘Tenho eu!’“. O reverso da medalha é que, cada vez que muda de casa, nenhum amigo a quer ajudar. “Costumam dizer: ‘Só se deitares fora as revistas!’“, brinca. Com a adolescência, esta paixão fundiu-se com outra: os videoclips de música – sempre a imagem.
Quando cumpriu 18 anos só tinha uma ideia em mente: ir para fora de Portugal. Na verdade não sabia bem o que queria fazer, mas “queria viver a experiência da independência”. “Não gosto de conforto em nada. Apesar de sempre ter tido tudo, sempre gostei de lutar. Tinha medo de cair numa vida ditada, de acabar a seguir as convenções: estudar, casar, ter filhos. Queria ser desafiada e por isso fui para Londres. Fui sozinha, um pouco como aprendi a nadar sozinha: o filho de uma amiga da minha mãe costumava tirar-me as braçadeiras e atirá-las para a outra ponta da piscina e depois dizia-me: ‘Agora vai buscá-las’“.
Depois de três meses insuportáveis, a viver nos arredores de Londres, voltou a Portugal para as férias de Natal. No regresso à capital inglesa tinha tomado uma decisão: ia procurar outra casa. Encontrou um anúncio num jornal de um quarto em Holland Park e aí acabou por descobrir a sua primeira amizade em Londres. “A Drussila era uma condessa russa, que casou aos 18 anos com um milionário, mas que aos 21 renegou a fortuna e virou uma modelo hippie, musa do David Bailey. Tinha 62 anos e eu 18, mas saíamos muito juntas. Era uma mulher incrível, que me mostrou a Londres com que eu sonhava: criativa e livre”. Talvez tenha nascido aí a ‘Hello Kitty de ponta e mola’, alcunha que um amigo lhe atribuiu.
Na universidade, começou por experimentar Jornalismo, mas logo após a primeira aula pediu transferência para a área de Televisão e Cinema. “Começaram-me a falar dos tories e eu não queria nada daquilo”. Sabia que não era aquele o seu caminho, mas na verdade também não sabia o que queria. Isto até ao final do primeiro semestre, altura em que fez um mini documentário sobre as estrelas de Hollywood que estavam a tomar conta dos teatros de Londres. De repente, percebeu que queria realizar. “Meti na cabeça que ia falar com o Woody Harrelson. Escrevi-lhe, fui ter com ele à saída de actores do teatro, mas ele dizia sempre que não podia falar comigo. Na terceira vez que fui ao teatro, comprei um bilhete para a primeira fila e, mal a peça acabou, levantei-me a aplaudir-me. Dali corri para a saída de actores com um amigo que me segurou na câmara e quando ele saiu disse-lhe: ‘Woody, são só três perguntas!’. E ele lá falou. Percebi aí que vale sempre a pena ir atrás”. Anos mais tarde, numa ida ao teatro com a actriz Annabel Wallis, acabou a jantar com Woody Harrelson. “Foi uma noite super divertida. Ele lembrava-se perfeitamente do nosso primeiro encontro. Acabámos às 2 horas da manhã a bater à porta do Cheers de Londres [Woody Harrelson estreou-se na representação na série Cheers]. Ele gritava ‘I used to work here!’ e eu acrescentava ‘Let him in!’“.
Apesar do entusiasmo com a realização, raramente ia às aulas, apenas às práticas. Ao fim-de-semana trabalhava num clube de vídeo para ajudar a pagar as contas. “E para ver filmes de borla. Levava sempre dois para casa e depois passava horas com a Paula Lobo Antunes em frente à televisão. Tornámo-nos muito amigas em Londres”.
Depois de passar o último semestre do curso num intercâmbio em Sydney, na Austrália, regressou a Londres. Já com o diploma na mão, em 2004, os pais fizeram-lhe uma espécie de ultimato: ou arranjava trabalho em seis meses ou tinha de regressar para Portugal.
Cristiana fez uma lista dos dez filmes mais interessantes que estavam a ser realizados, naquele momento, em Inglaterra. Em primeiro lugar estava Mrs. Henderson Presents, uma comédia de Stephen Frears, produzida pelos estúdios Buena Vista International. Contactou-os. Queria trabalhar, mesmo que fosse a tirar cafés e fotocópias. Foi chamada para um estágio de uma semana e acabou por ficar um mês. No primeiro dia, ao entrar no set, ouviu a voz de Judi Dench e desatou a chorar. “A Norma Heyman [produtora do filme] apercebeu-se e, desde aí, disse-me que sempre que tivesse o meu trabalho despachado, podia ir para o set. Passei um mês ao lado do Stephen Frears, da Judi Dench e do Bob Hoskins”.
No final desta experiência, a mesma produtora deu-lhe um conselho que viria a revelar-se fulcral: arranjar um agente. Assim o fez e, três semanas mais tarde, estava a ser chamada para o cargo de recepcionista na recém-criada produtora Knucklehead. Não sabia nada de publicidade, mas não se podia dar ao luxo de recusar. “Na minha cabeça, o meu caminho era o cinema. A publicidade foi um acidente. Um bom acidente. O primeiro ano foi muito intenso, aprendi tudo, da produção à pesquisa. E teoricamente era só a recepcionista”.
Foi aqui que se estreou com o documentário sobre Dita Von Teese, algo que, hoje em dia, acredita ter conseguido graças à crença de que é capaz de fazer tudo. Nos anos que se seguiram trabalhou com as mais prestigiadas marcas, mas continuou a ser ‘a recepcionista’. “Queria era aprender e trabalhar, por isso não tinha nenhum problema em continuar a atender telefones. Mas depois deixou de ser possível conciliar”.
Há três anos, no entanto, saiu da Knucklehead. Mais uma vez, o desejo de independência falou mais alto. “Comecei a sentir que, se um homem era exigente, era visto como criativo. Se eu era exigente, era pré-menstrual. Antes de me chatear, saí”. Apesar desta experiência, Cristiana não considera que o seu sexo influencie a forma como é vista na profissão. “Acho que o que mais influencia não é o facto de eu ser mulher, mas o facto de ser descontraída e até um pouco palhaça. Sou muito séria na preparação, sou regrada e sei o que quero. Mas quando chego ao set, talvez justamente porque sei que está tudo preparado ao pormenor, brinco muito”. Esta confiança valeu-lhe, aliás, um ‘elogio perverso’. No último trabalho que realizou – na Suíça, com a Selecção Nacional, a propósito da classificação para o mundial de futebol – trabalhou com um assistente que tinha colaborado com Lars Von Trier em Ninfomaníaca. “Ele disse-me que fazia lembrar o Lars. Reagi logo, dizendo que não sabia se deveria considerar isso um ataque ou um elogio, mas ele explicou-me que tinha a ver com o facto de saber o que quero. Se assim é, acho que foi um elogio…”.
Mais, Cristiana diz que nunca se deslumbrou e que isso é fundamental para a relação que tem com as figuras conhecidas com quem trabalha, de Messi a Federer, de Lewis Hamilton e Fernando Alonso. “Tenho uma regra: se tratarmos estas pessoas como celebridades, elas vão comportar-se como tal. Por isso trato-as como pessoas normais. Mas claro que, por vezes, há uma carapaça, a primeira barreira é difícil. Só que, muitas vezes, essa dificuldade nem vem da própria pessoa, mas da sua entourage, como o caso do agente do Messi que insistia que ele não podia estar mais do que um minuto parado no set. E afinal o Messi não tinha nenhum problema com isso. Ainda acabámos a dançar os dois no set, enquanto mudavam um carro, só para fingirmos para o agente que ele estava ocupado. Para ter actuações reais preciso que se sintam à vontade”. Pela mesma razão, já se ‘pegou’ com Lewis Hamilton em set porque este alegava que o seu trabalho era fácil. Resultado? Cristiana passou-lhe a câmara para as mãos em plena filmagem.
No meio de trabalho e brincadeiras, criou empatia com muita gente, mas amizades, diz, só uma. “Filmei um anúncio de beleza com a Wei Tang, actriz muito conhecida na Ásia, que fez o Lust, Caution, do Ang Lee, e ficámos muito próximas. Passamos a vida a enviar mensagens de voz pelos quatro cantos do mundo”.
A trabalhar em publicidade há nove anos, a realizadora diz ter atingido o momento em que já não tem de aceitar tudo. “Estou a aprender a dizer que não. Faço aquilo que me permita aprender. Continuo a aprender a ser melhor realizadora. Gosto de sentir medo, de me sentir fora do meu contexto. Por isso mesmo faço beleza, comédia, futebol… Não gosto de ser catalogada nem de fazer só uma coisa. Para mim seria enfadonho fazer sempre a mesma coisa”.
Assim, em 2012, pôs a equipa de futebol do Arsenal a dançar ballet para a Citroën. Em 2013, virou o mundo ao contrário para a Caixa Geral de Depósitos. Ainda antes, em 2009, decidiu que queria fazer chover azeitonas, num anúncio para o azeite Oliveira da Serra. Chamou Barry Ackroyd e Robbie Ryan, dois dos mais premiados directores de fotografia do mundo, e com eles viveu uma “odisseia em termos técnicos”. “Primeiro tentámos com dinamite e dois canhões, mas acabou tudo em pasta de azeitonas. Depois, usámos uma catapulta, mas também não funcionou. No final, teve de ser com ar comprimido, como se usa para os confetti. Usei quatro toneladas de azeitonas e consta que ainda hoje aparecem umas perdidas no Parque das Nações e na estação de Rio Maior”.
Em qualquer um deles cumpriu uma tradição: assim que soube que tinha ganho o trabalho ofereceu-se uma peça de roupa. Marc Jacobs, de preferência. É que Cristiana Miranda continua a ser a mesma miúda apaixonada por moda.
Com casa em Londres e habituada a passar mais tempo em aviões do que em terra, os 30 anos fizeram Cristiana sentir que queria um elo mais concreto com Portugal. No ano passado criou a sua própria produtora, a Playground, onde trabalha com o irmão e com o fotógrafo Kenton Thatcher. Fê-lo porque quer continuar a trabalhar em Portugal, mas também porque acredita que “há muito talento” no país. “Falta acreditar e incentivar o talento nacional, sobretudo os mais jovens. Além disto, o mercado é pequeno e há poucas oportunidades. Por isso vamos tanto para fora”. Um desses emigrantes é Hugo Veiga [ver página 42]. E foi com ele que Cristiana Miranda saboreou uma derrota: “Competi para filmar o anúncio da Dove, que ele criou. Assim que li o projecto, vi logo que ele ia ganhar imensos prémios. Mas não fui escolhida”.
Além de Portugal, a realizadora está representada em Espanha, EUA e Ásia. E em Londres, onde desde que deixou de ser representada pela Knucklehead passou a trabalhar com a Passion Raw, empresa que inclui um segmento dedicado ao cinema e que até já ganhou Óscares – pelos documentários Searching for Sugarman (2012) e One Day in September (1999). Apesar do sucesso na publicidade, Cristiana nunca esqueceu o cinema. “Mudei de agência a pensar na minha longa-metragem. Tenho uma história para contar, um filme realizado em Portugal, mas que mistura personagens portuguesas e estrangeiras. É o que eu sou, afinal. E sinto que está cada vez mais perto de acontecer”.