A Procuradoria-Geral da República (PGR) diz que o desfecho do inquérito depende de decisões do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal – onde o clube colocou ao longo desta década 27 acções de impugnação fiscal, visando precisamente os factos visados na investigação criminal.
Entre 16 de Junho de 2004 e 29 de Janeiro deste ano, a Sociedade Anónima Desportiva (SAD) e o Club Sport Marítimo da Madeira moveram 27 processos de impugnação fiscal contra a Fazenda Pública, no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal. A esses processos não é alheia a investigação aberta em 2004 pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), por indícios de fraude fiscal.
Em causa estão os pretensos ‘contratos paralelos’ celebrados com jogadores e equipas técnicas, com recurso a offshores, para fugir aos impostos.
Remunerações paralelas
Nas décadas de 90 e 2000, era frequente os clubes recorrerem a empresas offshore por onde passavam remunerações paralelas, além das ‘oficiais’. Só o contrato oficial era declarado à Liga, sendo o resto do salário pago via offshore, livre de impostos e prestações à Segurança Social, quer para clubes quer para atletas.
A investigação, porém, é juridicamente complexa. Há os ‘contratos paralelos’ e os ‘contratos de utilização de nome e imagem para fins comerciais e publicitários’: os primeiros são ilegais e os segundos são admissíveis no ordenamento jurídico português (previstos no contrato colectivo de trabalho desportivo).
No caso do Marítimo, tudo começou a 6 de Março de 2003, por causa do julgamento que opôs o presidente do clube, Carlos Pereira, ao ex-treinador Augusto Inácio (agora director-geral do Sporting), por causa de uma entrevista que este deu a uma rádio madeirense, em Junho de 1999. Inácio caracterizou Carlos Pereira como “senil”, “chico-esperto” e “lambe-botas”.
No julgamento, o treinador referiu a existência de ‘contratos paralelos’ no Marítimo – o que levou o Tribunal a extrair certidões por indícios de fraude e abuso fiscal, no período compreendido entre 2002 e 2004. Iniciou-se, então, o inquérito no DCIAP.
Em Maio de 2004, o Fisco pediu o levantamento do sigilo bancário de uma conta do clube, por verificar que, no item de fornecimentos e serviços externos, constavam encargos que ascendiam a 1,8 milhões de euros. Estes encargos teriam como documentos de suporte facturas emitidas pela empresa Promax, registada na Ilha de Man. Também haveria notícia de contratos entre a Arwa Developement Inc., nas Ilhas Virgens britânicas, com ex-jogadores do Marítimo.
O Marítimo contestou o levantamento do sigilo junto do Tribunal Administrativo e Fiscal, mas o acesso à conta acabou por ser facultado.
Na dúvida, o clube acabou por abandonar o recurso aos contratos feitos nos moldes descritos (via offshore, embora a Promax seja uma empresa certificada), mas mantém os contratos de imagem, previstos na contratação colectiva.
Crimes a prescrever
Dirigentes e técnicos do rival Clube Desportivo Nacional foram entretanto julgados por terem implementado uma política fiscal semelhante – tendo acabado por ser absolvidos das acusações de fraude fiscal qualificada, fraude à Segurança Social e branqueamento de capitais.
Quanto ao Marítimo, a investigação faz agora dez anos, ainda sem nenhuma conclusão (arquivamento ou dedução de acusação). Há crimes que poderão estar à beira da prescrição ou mesmo já prescritos.
Contactada pelo SOL, a PGR afirma que há ainda dados que precisam de ser carreados para os autos. “Aguardam-se respostas dos Tribunais Fiscais, onde foram instauradas impugnações de liquidações que foram invocadas serem coincidentes com os factos sob investigação”, diz a PGR.
Por seu turno, o presidente do clube e da SAD, Carlos Pereira, rejeita responsabilidades no protelamento do desfecho do inquérito. Garantiu ao SOL, aliás, que o Marítimo até já pediu a aceleração processual para poder ver-se livre das garantias bancárias que lhe são exigidas.
Carlos Pereira diz que o DCIAP, sob pena de passar “vexame”, deve tirar ilações da recente absolvição do Nacional, e nega que o Marítimo tivesse contratos ‘paralelos’. O autor desta expressão, Augusto Inácio, foi condenado por difamação, a 7 de Abril de 2003, e obrigado a pagar uma indemnização a Carlos Pereira.
Duas impugnações decididas
O SOL apurou que, das 27 impugnações fiscais movidas pelo Marítimo, duas tiveram decisão do Tribunal Central Administrativo Sul, a 16 de Abril de 2013. O clube conseguiu ganhar a acção em que o Fisco exigia à SAD mais de 210 mil euros de IVA – relativo à indemnização de um milhão de euros que o Marítimo recebeu do Benfica, pela transferência do jogador Tiago para o clube da Luz, em 1997. E perdeu a acção em que o Fisco exigiu IVA à SAD pelo serviço prestado aos sócios do clube, relacionado com o acesso aos jogos de futebol, nos Barreiros, nas épocas 1999/2000 e 2000/2001. Estavam em jogo 258 mil euros.
Recorde-se que, no caso dos ‘contratos paralelos’, a PJ fez buscas às instalações do Marítimo, em Janeiro de 2005, extensíveis à empresa que presta serviços de contabilidade à SAD. Foram necessárias três diligências para que, já em casa de um administrador da SAD, os contratos fossem entregues voluntariamente.
Carlos Pereira nega o protelamento de informações ao DCIAP e garante que a SAD, o clube e o gabinete de contabilidade têm colaborado. “Até do tempo do Carlos Jorge [1997] nos exigem IVA. A Administração Fiscal está faminta. Não temos culpa de a Administração Fiscal não ser clara”, rematou.
O dirigente recorda, a propósito, as declarações de uma técnica da administração tributária que, ouvida como testemunha no caso Nacional, a 23 de Setembro de 2013, afirmou não haver ocultação de verbas no recurso a ‘contratos de imagem’. Segundo essa técnica, “criminalizar uma coisa que não está estudada [direitos de imagem] é estranho”.