Imagens e afectos esmagados por uma dura realidade. Olhos bonitos ainda expressivos, crianças fintadas pelo destino que contam os dias que faltam para chegar ao sol. Dei comigo a pensar que o mundo é pequeno, a vida é dura e faz de nós o que quer. Por vezes são outros, até desconhecidos distantes, que trocam as voltas e lhe dão sentido ou oportunidades.
O Verão Azul é isso mesmo, um bocadinho de céu limpo e com horizonte. Visitar Chernobyl, conhecer as condições de vida de muitas das crianças apoiadas por este projecto solidário, foi uma experiência para a vida que se define numa única frase roubada da obra de Milan Kundera. O que vi e senti é a insustentável leveza do ser.
As imagens que registei na memória são emoções, gritos gravados a traço fino em notas de viagem.
Durante quatro dias, num Novembro frio, ainda temperado por lá na Ucrânia (a temperatura ronda os cinco graus durante o dia), os técnicos que organizaram esta viagem voltaram a fazer o percurso de reencontro com o projecto Verão Azul. Era preciso perceber como estão as crianças que já fazem parte do plano de férias das famílias portuguesas que as acolhem. Mas esta equipa tinha ainda outra missão: conhecer e sinalizar mais umas quantas crianças, de forma a tornar o projecto mais abrangente de afectos e, acima de tudo, de esperança para essas crianças.
Eu fui viajante silencioso mas de olhar atento, espantado. Sem compromisso, viajei só para ver e conhecer essa dura realidade, as privações. Percebi que os olhos podem gritar em silêncio, jubilar de alegria, ou mesmo gelar quem passa distraído ao lado. É essa viagem que vos proponho. Pude caminhar silencioso, às vezes arrepiado, preso pela estranheza do lugar, percorrendo as terras abandonadas e tóxicas.
Começo pelas crianças porque é delas que guardo os grandes planos dos afectos. De tudo senti nuns olhares breves que cruzámos.
Eu vi. Eu vi o abraço da Vitória e este sorriso que uma foto guarda e fixa. Foi um abraço sentido que tinha a partilha e a emoção de reencontro. Foram uns segundos apenas, mas valeram por semanas ou meses de distância.
Conheci-a no Verão passado, aqui em Portugal. A Vitória e mais de uma dezena de crianças vêm há seis anos para Portugal por um mês de férias. São crianças das zonas pobres e de risco, as que vivem ali coladinhas aos terrenos perigosos e contaminados de Chernobyl, nas aldeias que ficam em redor de Ivankiv. Crianças que passam um mês de sol e praia no aconchego das famílias portuguesas que as recebem. É um mês de férias mas não só, são dias bronzeados de amizade e carinho, com uma sombrinha de Paraíso.
Dizem-me, e está comprovado, que ganham anos de vida. Assim talvez possam resistir melhor à palidez do seu país de contrastes e à pobreza extrema conformada. Percebi nesta visita aos lugares onde elas crescem e talvez brinquem, o que distingue o ser pobre do viver na miséria: pode ser-se pobre e tratar bem do que o dinheiro não compra, a dignidade e o asseio, ou viver derrotado nesse combate desigual e miserável na desistência encharcada em vodka.
A aldeia da Vitória tem um ar pesado; respira-se porque não há outro. O céu pousa, cinzento, sem pedir, numa pressão que desce até às cabeças, nos faz curvar o ânimo e quase nos esmaga. Por aqui já se habituaram. Pudera – não têm outro. O Inverno encurta o dia até onde pode. Às quatro da tarde é noite fechada e fria.
Andei uns quilómetros mais à frente, tudo existe numa morte lenta, desde logo a esperança. Chegámos no Outono já frio, mas a experimentar o que aí vem de Inverno, em que as temperaturas podem chegar aos 20 graus negativos. Começa por um branco imaculado, transforma-se num lamaçal escurecido com o degelo lento e deprimente de quatro meses. Não imagino o que será viver assim. Até poderia falar-lhes de fado, da malfadada vida que lhes deram, mas não foram eles a pedir uma central nuclear ali mesmo ao lado da porta, atravessando o quintal. Os invernos duros e gelados só são bons quando podemos imaginar uma Primavera verde e florida. Ali não.
Não fosse aquele veneno radioactivo quase invisível e pegajoso, sempre pousado que nem uma neblina matinal que se estende em extensas e planas terras de bosques e lagos, esta região seria – poderia ser – o celeiro de uma Europa sempre necessitada. Mas não, Chernobyl é nome que assusta e que há-de assustar, sei lá até quando. É preciso andar muito, mais de uma hora de carro, para deixar de sentir tão pesada herança. Só quase a chegar a Kiev é que se pressente o cosmopolita cheiro da cidade grande, da capital. Mas é aí que a indiferença dos contrastes mais dói. Senti-me na quinta avenida de Nova York, as ‘grifes’ de preço proibitivo estão lá todas: Chanel, Prada, Louis Vuitton, todas alinhadas e mais algumas a arrepiar de exagero, tal como o parque automóvel, dos mais caros que já vi.
Não foi preciso muito, bastou andarmos poucas dezenas de quilómetros e o país não é o mesmo, essas contradições são gritantes, chegam a revoltar pela exuberância das lojas, dos carros, pela opulência que o dinheiro compra sem contemplações nem respeito pela dignidade dos que nada têm. Na capital toda a gente corre para não parar, tropeçando nessa ideia de pobreza que está ali, paredes-meias.
Ivankiv
Ivankiv é uma cidade que fica a 70 kms da capital. É difícil acreditar que se lhe dê essa designação, demasiado pomposa para o lugar.
Há uma feira a céu aberto (não consegui sequer imaginar como funcionará no pico do Inverno, sempre rigoroso e branco). Há um mercado de lojas com bancas corridas de carne desprotegida. Vi um cão parado, cego de um olho, que farejava qualquer apara que lhe dessem ou que caísse da mesa do talhante. Uma cabeça de porco pendurada parecia sorrir, não percebi bem de quê. Há também peixeiras, que vendem peixe vivo de rio, quiçá contaminado. Mas o que não mata engorda, ou só mata devagarinho, sem que se sinta ou se veja.
Neste registo espantado dos ambientes, saltou-me à vista um casal idoso. Ela tinha apenas uma garrafa para vender e uns saquinhos de não sei bem o quê. Mais um molho de salsa e um fruto grande que parecia abóbora. Nada mais. Ele, ao lado, talvez marido ou só vizinho de venda, tinha nove peixes para quem quisesse. Era ele certamente que os pescava antes de ir para o mercado. Todos vivinhos ainda, a mexer, enquanto se ‘afogavam’ no ar. Na mesa estavam uns frascos de conserva com um liquido pastoso e esbranquiçado. Não quis saber o que era.
Em redor de Ivankiv há muita terra que não se pode arar, pelo menos oficialmente. Aqui e ali, uma casa que cai aos pedaços, outras mesmo abandonadas. E chamam a isto aldeias.
Naquelas onde entrei, nem todas tinham portas: apenas cortinas separavam as divisões. De luxos só detectei televisores, mas vi de tudo: casa pobre e asseada, pequeno apartamento a transbordar de lixo e roupa suja em que se tropeçava ao entrar, num desleixo que impressionava, de um casal jovem com três filhos ainda pequenos de dois pais diferentes. Entrei em alguns, mas a correr, por não aguentar ficar; era um cheiro estranho que pairava e parecia circular em câmara lenta, de tão nauseabundo, que se entranhava no ar daquele aquecimento doentio e permanente das casas húmidas.
As famílias numerosas, as que têm mais de três filhos, recebem um magro subsídio do Estado. Os números oficiais dizem que nesta província são mais de dez mil essas famílias, vivendo muitas delas no limiar da pobreza extrema. Mesmo assim, encontrámos na mais numerosa prole a alegria estampada em caras pequeninas e sorridentes. Dez filhos – doze bocas em casa para alimentar. Quando chegámos, estavam todos em grande e divertida algazarra no quintal.
Faço, mentalmente, um grande plano de Angelina: é jolie, é vivaça de olhos grandes, pele mais branca no contraste da camisola vermelha. Esta cara pode simbolizar o que de bom o projecto Verão Azul guarda de esperança. Por uma criança que fosse, já valeria a pena, mas já há muitas que transformaram um mês de vida por cá em anos ganhos por lá. Ali, eu senti ao olhar para Angelina a vida e aquele reforço quente que desce da alma ao peito, confirmando que vale sempre a pena fazer alguma coisa por alguém.
Quando damos, não estamos só a entregar algo; estamos também a emprestar o que um dia pode ser de novo distribuído, forte e grande como uma semente que, por bem entregue, pode fazer a sementeira de um descampado árido de afectos. A equipa que segue de perto estes casos continua cuidadosa e dedicada a semear, e eu vi como isso se pode fazer com o coração num olhar humedecido pela surpresa de cada história de vidas ainda pequenas.
Os irmãos da Angelina, este ano, vêm a Portugal pela primeira vez. Ela vai ter que esperar, ainda não tem a idade mínima dos seis anos para aderir ao projecto.
A Vitória atinge este ano a idade-limite para poder usufruir do Verão Azul. A Katrina cresceu a olhos vistos, ano a ano, e fala em português com orgulho da sua família da Maia.
Só doeu ver uma outra menina, também Vitória, mas só de nome. Tem 13 anos. Sem a conhecer, sentia-a derrotada. O olhar era pálido, escassas palavras envergonhadas num português que aprendeu a correr nos verões passados. Reparei que poucas vezes olhava nos olhos tristes e submissos. Cruzava os dedos na concha das mãos como quem agacha o sofrimento. Talvez vergonha pela família que nos mostrava.
Só a vi sorrir por momentos depois das despedidas. Veio a correr até à rua como quem espera boleia imaginária. Vitória sorriu, breve e a custo, apenas para dizer:
– O Paulo está bem? Manda cumprimentos, pediu, referindo-se à família de acolhimento que a recebe há seis anos em Portugal.
Todos os meninos que visitámos e mais alguns – talvez uns 20 -, em 2014 vão pintar de azul o Verão. Vi uma equipa com atitude, mobilizada e atenta ao chegar a escada da oportunidade, fornecendo as tintas da esperança, mesmo que um ano depois seja preciso retocar ou pintar tudo de novo. Afinal, o que é a vida que não um colorido mural sempre inacabado?
O acidente de Chernobyl foi ali mesmo ao lado. Aquelas crianças nasceram ali. Segui viagem porque o pior cenário estava ainda por sentir.
Esta reportagem teve o apoio da Liberty Seguros