Laços de família

Quando Gabriela Ruivo Trindade se mudou de Lisboa para Londres com o marido e os dois filhos pequenos, já lá vão dez anos, deixou para trás uma família numerosa, composta por dezenas de primos. Tantos que lhes perdeu a conta exacta e alguns nem conhece.

A verdade é que mesmo em Portugal os encontros não aconteciam com a frequência desejada. A família, natural de Estremoz, há muito se tinha espalhado pelo país, numa migração que, mantendo o sotaque alentejano, nem sempre retorna às origens. Até que, de algum primo cujo nome Gabriela não consegue precisar, surgiu a ideia: criar um blogue privado através do qual a família se mantivesse em contacto. Foi aí que algumas histórias da família começaram a surgir. Se uns primos usavam a página para partilhar fotografias dos filhos ou pequenas narrativas do quotidiano, outros decidiram ali colocar memórias familiares em risco de se perderem – umas contadas na primeira pessoa, outras já em segunda ou terceira mão, datadas de há mais de um século.

Desempregada (Gabriela é psicóloga de formação mas não exerce desde que vive em Londres), a prima ‘londrina’ inspirou-se nesses relatos para criar o seu primeiro romance: uma história que, narrada a várias vozes, se centra na figura de João José Mariano Serrão, personagem baseada no seu tio-avô, João Francisco Carreço Simões ou, como é conhecido na família, Ti Carreço. Agora a sua história – a real e a fictícia – já não pertence apenas ao universo familiar. Uma Outra Voz, que venceu o Prémio Leya 2013, já está nas livrarias.

“Começaram a aparecer muitas histórias de família como as que se contavam à volta da mesa e que eu ouvia em criança. Era um pouco como continuar a ouvi-las, mas num blogue. E eu já andava com a ideia de escrever um livro e que esse livro teria a ver com a minha família e com estas histórias. Ao vê-las reunidas percebi que era altura de avançar”, conta ao SOL Gabriela Ruivo Trindade.

Centrar a história no Ti Carreço foi, para a autora, algo de natural. Afinal, esta é uma figura mítica familiar “muito importante para Estremoz, sobre a qual já muita gente ouviu falar”. Porquê? Segunda a autora, implantou a República em Estremoz, que ajudou a elevar de vila a cidade, contribuiu para a sua electrificação, era um homem de negócios e, sendo solteiro, acolheu vários sobrinhos na sua casa, permitindo-lhes estudar. “É uma figura fascinante. Um empreendedor republicano que participou na luta clandestina, teve amizade com o António José de Almeida, antes de ele ser Presidente. Mas o que me atraiu mais foi o que desconheço. Ou seja, apercebi-me de que o que eu conheço são histórias. E as histórias muitas vezes são ficções, contamos o que nos contaram, que já foi contado por outros e que nem sempre corresponde à realidade. Lembro-me de ouvir a minha avó falar sobre ele, do seu retrato em casa dela, ao lado do telefone. Mas há um grande desconhecimento e um grande mistério à volta deste indivíduo”. Gabriela quis tentar completar a história, dar-lhe um sentido e fazê-lo através da imaginação: “A ficção vem do desconhecimento e da tentativa de criar a nossa história, a nossa interpretação”.

Roubar histórias

Narrado a tempos diferentes e a cinco vozes, cada uma inspirada num ou em vários membros da família (excepto a última, a da prostituta Ana, personagem ficcionada), o romance atravessa várias décadas do último século português, desde a implantação da República à manifestação anti-fascista do 10 de Junho de 1978, na qual a PSP disparou sobre os manifestantes, causando dois feridos e um morto. Um desses feridos, que ficou paraplégico, é Jorge Falcato, primo da autora, a quem Gabriela ‘roubou’ a história. Mas apenas os factos, que no romance se atribuem a Álvaro – personagem, assegura Gabriela, ficcionada. “Realmente aquela tragédia aconteceu. Mas o real é o facto de ele ter levado um tiro, a 10 de Junho de 1978. Houve uma concentração de extrema-direita, depois organizou-se uma contra-manifestação, com pouca gente, sem qualquer ameaça pública, onde a Polícia entrou a matar. Esta voz é baseada nestes factos. Mas Álvaro e as suas paixões são ficção”.

Para a autora, narrar o romance a várias vozes foi uma opção tomada desde o início. Como só conhecia o tio-avô através das histórias que ouvia, quis, também no livro, falar dele através do olhar dos outros. O difícil foi limitar o número de vozes porque quase todos os dias lhe surgia uma, à medida que ia lendo novas histórias. “Foi precisa muita contenção. Mas as histórias escrevem-se também a elas próprias. Isto foi o que veio ter comigo. E, por isso, foi o que ficou”.

No final, lê-se ainda a voz da personagem principal em fragmentos de um diário salvo do fogo (diário que o tio-avô também teve, mas que se terá queimado). Em tantas vozes, onde está então a da autora? “Em todas. As personagens que criamos são outra pessoa. Mas têm muito de nós, das nossas emoções, da nossa vida. Quando se escreve cria-se a partir de nós mesmos. E há memórias minhas. A primeira personagem espia as mulheres enquanto elas vão à casa de banho. Bem, isso é verdade. Acontecia comigo e com os meus primos. Ao lado da casa da minha avó havia um tanque onde as mulheres se iam lavar. Dava para espreitar por cima do muro do quintal. Não víamos nada mas era uma excitação. Há pequenas coisas que tirei da minha experiência. Mas nenhuma voz é baseada em mim”.

E é Ana, uma prostituta que acompanha Mariano Serrão desde a infância, a tal personagem totalmente ficcionada, que tem a voz mais forte e que rouba o protagonismo a todas as outras. “A Ana foi a personagem que me deu mais gozo escrever, acho que por ser completamente ficcional. Senti-me mais liberta. Porque escrever baseada em vidas reais é um bocado inibidor. Há um certo pudor, como se me estivesse a apropriar de algo que não é meu. Não estou a escrever sobre as vidas das pessoas, mas estou a apoiar-me em factos reais”. Ana foi a excepção, até porque o lado amoroso da vida do tio continua um relativo mistério. “Conta-se que teve uma paixão na juventude, que faleceu. E que nunca mais conseguiu amar ninguém. Era ele que baptizava as afilhadas e, diz-se, baptizava-as sempre com o nome da tal amada e, então, havia muitas Judites em Estremoz naquele tempo. O meu tio diz que há pouco tempo ainda conheceu uma última Judite. É uma história engraçada. E até pode ser verdade. Mas enquanto contadora da história não me convenceu. Imaginei um amor proibido”.

Livro terminado, premiado e publicado, restam a Gabriela duas certezas: a de que ainda não conhece a totalidade da história deste homem, mesmo que tenha imaginado uma, e a de que, passada a euforia do lançamento do livro, se vai lançar de novo à escrita. A psicologia está para trás. Esta é a profissão que agora quer seguir.

rita.s.freire@sol.pt