João Tordo: ‘Os meus livros são autobiografia’

Ao sétimo romance, João Tordo decidiu mudar: experimentou novas formas narrativas, adoptou uma voz feminina e trocou de editora. O autor diz que Biografia Involuntária dos Amantes é um livro sobre a transgressão e que a carta que escreveu quando o pai, o cantor Fernando Tordo, emigrou para o Brasil, «pode ter sido um pouco…

Um professor universitário divorciado e quase vencido pela vida conhece Saldaña Paris, um jovem escritor mexicano e melancólico. Quando, numa estrada da Galiza, o carro onde viajam atropela um javali, o poeta vai começando a desvendar a sua vida. E pede ao galego que leia um manuscrito da autoria de Teresa, a sua mulher morta. Está dado o mote para Biografia Involuntária dos Amantes, novo romance de João Tordo, acabado de publicar pela Alfaguara.

Biografia Involuntária dos Amantes debruça-se sobre vários temas e várias personagens. Qual foi a ideia inicial?

Comecei a escrever o livro há dois anos. Tem três temas: a maldade, a sedução e a transgressão. E comecei-o por três motivos. Por ter conhecido o escritor mexicano Saldaña Paris, no Canadá, e querer transformá-lo numa personagem usando a sua personalidade altamente romântica e o facto de ele ser poeta e escarnecer da sua poesia. Por querer centrar o romance numa personagem feminina. E por um amigo me ter contado que, depois de ter atropelado um javali, um polícia lhe perguntou se queria levar o animal para casa. Para o polícia, que chegou mais tarde, o javali era comida. Para o meu amigo foi uma paragem na corrente da vida. Foi isso que levou a escrever este livro, bem como ter passado muito tempo na Galiza e me ter apaixonado pelas paisagens e por uma província que é tão próxima de nós.

A transgressão atravessa todo o romance. O que lhe interessou no tema?

A ideia de que depois de errar uma vez a pessoa se sente à vontade para continuar a errar. É o que acontece no livro: as personagens erram constantemente. A transgressão é a palavra do livro: transgressão sexual, afectiva, de amizade. Enquanto seres humanos, estamos sempre a transgredir e, se a punição não chegar imediatamente, achamo-nos no direito de continuar a fazê-lo. É um livro escrito num período em que me dei conta das minhas próprias transgressões. Que não são tão sérias como as que vêm retratadas no livro. Mas os meus romances têm muito de autobiográfico. Alguns romancistas escrevem do ponto de vista exterior, observando as suas personagens. Os meus livros são autobiografia, não no sentido em que as coisas dos meus romances me tenham acontecido mas no sentido em que todas as coisas fundamentais que se passam na minha vida lá estão patentes.

Teresa, a personagem principal, personifica essa ideia de transgressão. Como surgiu esta voz feminina?

É uma personagem que quer tudo cedo demais. É inspirada pela minha mãe e pela minha irmã, e por uma certa tradição familiar de mulheres que tenho na família. Agora tenho seis irmãos homens. Mas cresci rodeado de mulheres. Quis perceber como funcionava a cabeça de uma mulher e nada melhor para o fazer que escrever acerca disso, tentando colocar-me nessa cabeça. Essas foram as primeiras a ser escritas, porque não sabia se ia conseguir fazê-lo.

E conseguiu?

Surpreendentemente acho que sim. É uma questão de empatia. Os meus romances têm cada vez menos a ver com eu e cada vez mais a ver com o nós. A arma mais poderosa que temos enquanto seres humanos é a identificação. Claro que é mais difícil identificar-me com uma voz feminina do que com uma masculina, que conheço todos os dias. A feminina é-me mais distante. Mas tenho por ela uma curiosidade maior. Demorei alguns dias até conseguir começar a escrever. Mas quando percebi que havia coisas que me uniam tão fortemente à Teresa como a qualquer outra personagem masculina sobre a qual tenha escrito, a identificação deu-se. E foi uma questão de modelar a escrita para que fosse verosímil ser uma mulher a contá-lo.

Parte do livro decorre na Galiza. Porquê?

Fui à Galiza a convite do Instituto Camões, há cerca de um ano e meio. Passei lá umas semanas. Gostei muito de lá estar, sobretudo em Compostela e Pontevedra, que são duas cidades pequenas, com um lado de província que me encanta cada vez mais. Nas cidades mais pequenas há tempo. Para um escritor é fundamental que exista tempo. E passei um mês a escrever, numa residência da editora Axóuxere, em Brión, uma vila junto ao mar, com cerca de 20 habitantes.

Não só adopta um ponto de vista feminino, como usa várias formas narrativas. Porquê?

Há cartas, telefonemas, e-mails… Uso várias formas de aproximação à escrita que não tinha usado antes. Não quero estar sempre a fazer a mesma coisa. Ainda que a voz narrativa seja imediatamente identificável, à medida que se avança na leitura começa-se a descobrir que o livro não é tão linear como parece, quase como um castelo de cartas prestes a desabar. Quando o terminei, voltei atrás e rescrevi tudo. Por ser um castelo de cartas tem uma certa fragilidade, o que é interessante.

Faz um retrato do Portugal pobre dos anos 80. É uma visão desencantada do país?

É um Portugal que eu também conheci. Venho de famílias humildes. A minha avó foi costureira a vida toda e passou por muitas dificuldades na sua adolescência e vida adulta. A imagem de que cresci no meio artístico é falsa. Cresci com mãe, avó, tia-avó, num meio humilde. O meio retratado no livro é mais humilde do que aquele em que cresci, mas tem muito a ver com o Portugal pós-revolução, pré-CEE, ainda sem os bens burgueses a que nos fomos habituando à medida em que os anos foram avançado, até entrar nos anos 90, uma época ilusória. Sempre fomos pobres. E, pelos vistos, continuaremos a ser. A família que retrato na Madragoa dos anos 80 é uma família como milhares de outras que existirão por esse Portugal fora. Não é uma visão desencantada. É a realidade.

Mas os problemas desta família vão muito além da falta de dinheiro…

Naquela casa estão uns em cima dos outros, a Teresa divide beliche com o irmão, a avó está sempre presente, a mãe também lá vive, tal como o avô, que está sempre a beber e a jogar cartas. E o pai fica à porta. Une-os a todos um amor tremendo e uma repulsa centrada na figura do pai ausente.

Tal como nos seus livros anteriores, as personagens estão deslocadas, fora do seu país. Porquê?

Eu próprio me sinto assim. Fui viver para fora de Portugal aos 23 anos, passei bastante tempo fora, em Londres e Nova Iorque. E por causa dos meus livros e em consequência dos meus livros, passo muito tempo noutros lugares. Estou desenraizado, é natural que as minhas personagens também o estejam. E porque a busca da identidade, o tema que percorre todos os meus romances, passa por esse desenraizamento. Não é preciso sair da própria cidade para o sentir. Mas uso as geografias como maneira de colocar as personagens à prova, para que possam compreender quem são, que vida nova podem ter.

Há uma grande melancolia no romance. Porquê?

Não vejo a melancolia como uma coisa má, mas como um sentimento de falta de uma coisa qualquer que não sabemos o que é. O que tem tudo a ver com os meus livros. As minhas personagens não sabem o que lhes é necessário para se completarem e descobrem-no no outro, numa espécie de rejeição do culto do eu.

O sexo está presente no romance de muitas formas, desde a mais pura e doce à mais violenta. O que lhe interessou explorar?

Quis explorar a transgressão que é sempre a relação sexual. E quis explorá-la de vários pontos de vista. A relação da Teresa com o Jaime começa por ser, como todas as primeiras relações, isenta de qualquer premissa, não há passado, bagagem, preconceito. Depois chega a vida adulta e a relação fica contaminada. O Jaime [Toledo] tem as mesmas iniciais que eu – no fundo, sou eu a tentar colocar-me naquela história. E a tentar também recordar como foi a minha primeira relação, o meu primeiro amor, e a transgressão que sucede depois, quando já somos conscientes de todo o poder que temos através do sexo. Através da ficção podemos redimir-nos, sentirmo-nos apaziguados com problemas que nos inquietam.

Há vários anos que publicava com a Leya. Agora mudou para a Alfaguara. Porquê?

Por razões em nada relacionadas com a Leya. Foram pessoais. Por culpa minha, sentia-me estagnado criativamente. Tenho um pavor tremendo das mudanças porque sempre vivi com medo do futuro. Portanto decidi contrariar-me, aceitar a mudança. E não só mudei de editora como tentei fazer coisas neste romance que nunca tinha feito antes.

Há pouco mais de um mês escreveu uma carta ao seu pai, que teve uma repercussão enorme. Estava à espera?

Não, e não queria que tivesse tido. Escrevia-a no meu blogue, que é lido por pouca gente, pessoas do meio literário. Nunca esperei isto. O meu pai tinha-se ido embora no dia anterior, sentei-me ao computador e senti-me profundamente triste, pelo estado do nosso país, por o meu pai ter partido. Mas julgo que a carta pode ter sido um pouco mal interpretada. Nunca disse que o meu pai deveria receber mais do que iria receber. Disse apenas que se ele ficasse neste país teria esta reforma. E nunca quis que parecesse um texto de vitimização ou de lamento.

Foi uma carta escrita de filho para pai?

Só isso.

rita.s.freire@sol.pt