‘O 25 de Abril foi um golpe militar e isso entristece-me’

Maria Filomena Mónica fala sobre a felicidade imprevisível do 25 de Abril e o que ainda falta conquistar. Este Governo não a enfurece como o de Sócrates, que considera «o mais criminoso» na História do país.

O 25 de Abril é de esquerda?

Primeiro, o 25 de Abril é um golpe militar e isso entristece-me. Significa que não foram os cidadãos que deitaram abaixo o regime anterior. Em Portugal, nunca foram os cidadãos a lutar pela liberdade. Somos um povo obediente e que, pelos vistos, não se importa de viver em ditadura. Os militares é que tomam o destino da nação nas mãos e isso entristece-me. Dito isto, deram-nos a liberdade para estar aqui a falar, o que era impensável antes do 25 de Abril, portanto, para mim, é um golpe de esquerda.

Como é ser de esquerda, 40 anos depois do 25 de Abril?

É estranho, não mudei muito no que diz respeito à esquerda. Nunca tive tentações – a não ser nos primeiros dias a seguir à revolução – de ingressar num partido, que era o PCP, o único partido sério. Não era um dos partidecos a brincar, feitos por meninos da classe média, a que eu pertencia. O que define a esquerda é a luta pela liberdade. Depois a igualdade. As sociedades não serem tão desiguais como é Portugal, que continua a ser o país mais desigual na Europa.

Foi uma revolução pacífica. Isso é a prova máxima de um povo de brandos costumes?

Não. É a prova de que o regime estava totalmente desfasado do que se passava no mundo. É quase surrealista. O regime já estava bastante podre, se não as coisas teriam sido mais complicadas.

Foi criada no seio de uma família católica e conservadora. Como assistiu ao 25 de Abril?

Foi inesperado e glorioso ao mesmo tempo. O meu pai era conservador mas muito moderado. A minha mãe era católica e interessava-se mais pelo destino da Igreja Católica do que propriamente pelo regime. Dava-me muito pouco com eles nessa altura, tinha saído de casa aos 19 anos e tinha-me casado contra a vontade deles. Achavam que era doida varrida e só causava problemas, de maneira que não era uma situação para grandes confidências. Mas a família não se afligiu com as consequências do 25 de Abril, mesmo sendo católica e de direita.

Como viveu esse dia?

Tinha estado dois anos em Oxford a doutorar-me e vim cá fazer investigação quando foi o 25 de Abril. Estava a viver sozinha com os meus filhos e foram os vizinhos do lado que tocaram à porta a dizer que tinha um telefonema. Eram seis da manhã e era uma antiga empregada da minha mãe a dizer que a minha irmã tinha visto tanques na rua e para não deixar os miúdos ir à escola. Pessimista como sou achei logo que era um golpe de direita, do Kaúlza de Arriaga, e fiquei tristíssima. Voltei para casa, liguei a rádio e percebi que não. Fui com o Vasco Pulido Valente para o Largo do Carmo. Depois até pedi a suspensão da bolsa e disse ao meu supervisor que tinha havido uma revolução e queria assistir.

E depois do Largo do Carmo?

Tive a brilhante ideia de ir ver como estavam as coisas na PIDE – não era muito brilhante porque foi o único sítio onde mataram pessoas. Depois vim para casa e, em honra dos militares, calcei umas botas. Achava que era engraçado. Fui a Monsanto ver o que se passava com a libertação dos presos. Foi uma espécie de felicidade imprevisível porque achava que não tinha contribuído para isso, era de esquerda e em Oxford ainda me tornei mais de esquerda, mas não tinha militância política. Ah! Ia-me esquecendo, fui ver a chegada do Mário Soares e do Álvaro Cunhal, que me impressionaram imenso. O Soares estava radioso. Era novinho com muitos caracóis e um ar feliz. E o Cunhal em cima de um tanque. Fiquei contentíssima porque percebi que íamos ter democracia e partidos.

Nessa altura não lhe deu vontade de participar mais activamente?

Deu. Não tanto na política, mas no sindicato. Fui às primeiras reuniões dos sindicatos de professores. Achei que era preciso que Portugal tivesse sindicatos fortes. Mas não era suficientemente importante para mim. A minha prioridade sempre foi fazer os meus estudos o melhor possível de forma a tornar-me totalmente independente seja de qualquer marido que viesse a ter – e tive vários – seja dos meus pais.

As mulheres foram o grupo social que mais ganhou com o 25 de Abril?

Foram os trabalhadores, mas em segundo lugar as mulheres. Há amigas minhas de infância, que são de direita, que acham que fui queimar soutiens para o Parque Eduardo VII. Não é nada o meu género. Não era do género hippie de andar com fatos do Afeganistão e flores na cabeça, achava aquilo um disparate. Mas lutava para que as mulheres tivessem igualdade de direitos em relação aos homens. As mulheres ganharam muito em expectativas de vida. Quando fiz o 7.º ano os meus pais não queriam que fosse para a Universidade, porque me ia casar e não valia a pena. Agora o normal é que as raparigas vão para a Universidade como os rapazes, e isso é fruto do 25 de Abril.

O que ainda falta?

Falta que as mulheres tenham acesso aos lugares de topo das empresas privadas. Em relação aos filhos, as mulheres ainda fazem tudo, os maridos nada. Os homens portugueses têm que se pôr a par do que se passa nos países mais avançados e perceber que ter um filho é dos dois.

Em 2011 dizia que não se queixava do Governo. Mantém a opinião?

Provavelmente não me queixava porque tinha esperança na mudança, depois do Governo mais criminoso que tinha existido na História de Portugal, que era o de Sócrates e que nos deixou à beira do abismo. Este Governo não me enfurece como o de Sócrates, mas não tem tido garra, nem coragem.

Mas tomou medidas das quais muitos portugueses discordam…

Imagino que as medidas eram necessárias. Se devíamos muito dinheiro ao estrangeiro, agora temos que pagar. Andámos a comprar coisas que se calhar não eram essenciais e a corrupção foi enorme e continua. E o povo é muito tolerante com os corruptos. A justiça tem tido um papel muito negativo porque não funciona. Já deixou prescrever crimes gravíssimos. Eu, que pago impostos e pensava que era uma maneira de redistribuir a riqueza no país, a partir de agora, se calhar, o que me apetece é fugir. Ah sim o Jardim Gonçalves não vai preso? Ninguém vai preso? Então porque hei-de estar a pagar pelos bancos que deixaram falir e só fizeram negociatas?

O que é possível fazer para reformar o regime político?

Uma reforma eleitoral passando de listas para votação uninominal. Nós votamos em quem o secretário-geral do partido escolhe. Lá confecciona a listinha e a gente vota na listinha, ou seja, são os mais abjectamente obedientes ao secretário-geral. Não é um currículo invejável. Se votássemos em alguém que fosse popular no bairro onde viva, mesmo que gerasse algum caciquismo, eu preferia, porque ia ter com ele e dizia ‘eu acho isto ou aquilo’. A primeira reforma para o sistema político se tornar mais saudável é o cidadão sentir que no Parlamento alguém o representa. Como não sente é perigosíssimo.

Vai votar nas Europeias?

Ainda não decidi mas se for votar anulo o voto. Acho que aquele Parlamento não me representa.

sonia.cerdeira@sol.pt