A Flor e a Foice, editado na Holanda em 1975 e agora em Portugal, é um olhar bem documentado, em cima do acontecimento, sobre os dias da Revolução e os seus agentes. Na altura já estava a viver na Holanda. Como fez a pesquisa?
Comecei a trabalhar nesse livro em 1962. Contactei pessoas em Paris que pertenciam à chamada oposição. Li muito, mantendo-me ao corrente da imprensa americana, inglesa e francesa, procurando o maior número de fontes. A partir de 64 vinha a Portugal três vezes por ano e ia vendo como as pessoas reagiam, quem estava na oposição, na extrema-esquerda, os comunistas… Fui-me documentando. Até que chegou o dia da Revolução.
Qual era o ângulo ao escrever em 62?
De descrença e de dúvida. As palavras que as pessoas diziam não correspondiam à sua atitude. Diziam os clichés do costume: a liberdade, a democracia, a felicidade do povo e o sol para todos nós. O que se via nos bastidores era uma luta ferrenha para ver quem ia ganhar e ocupar os bons lugares quando a hora chegasse.
Como foi ver à distância o que estava a acontecer em Portugal?
Não foi ver à distância, foi olhar para dentro, chamar o que tinha lido e observado. Uma recapitulação que por acaso coincidiu com o momento histórico.
No livro olha o 25 de Abril de forma crítica. Como foi recebido em 75 na Holanda?
Mal. Ia contra a euforia do momento, que não permitia vozes dissidentes. E esta era uma voz a gritar contra o que parecia a evidência. E não foi bem recebido. Foi esquecido. Teve uma única crítica, má, num jornalzito belga de extrema-esquerda e, de resto, desapareceu. Vai ter agora, também, uma segunda edição em holandês.
Como queria a Holanda olhar Portugal?
Como uma esperança, de coisas novas que iam acontecer, uma mudança radical de regime, a chegada da democracia, o fim da miséria. Era um sonho lindo e o livro ia contra a tendência optimista e festiva.
Hoje parece premonitório em certas observações. Como se sentiu ao revê-lo?
Preferia não ter acertado, que aqueles que me trataram por traidor e filho da puta e vendido ao capital tivessem razão. Não que eu me tivesse vendido, mas preferia que a evolução tivesse sido como nós sonhávamos ou como aqueles que sonhavam, sonhavam que viesse a ser.
Quando lhe chegaram as notícias não chegou a ter um momento de euforia?
Tive. Sabia, como muito gente, que ia acontecer. Todos os dias eram de expectativa desde o início do ano, aquilo vibrava. E deixei-me levar pela euforia e pela esperança, esqueci-me de mim próprio, do que tinha escrito, do que supunha que ia acontecer. E o dia mais bonito desse momento foi o emocionante 1.º de Maio, uma coisa inesquecível. Quem viveu aquele 1.º de Maio na Avenida Almirante Reis, cheia de povo, para cima de um milhão de pessoas, daquela massa de gente saiu um calor… Mas foi um calor que durou horas. Era bom que tivesse durado anos.
Veio a Portugal ver a Revolução?
Não vim no dia da Revolução porque não havia avião, estava tudo cheio. Mas no dia seguinte já cá estava. A Universidade de Amesterdão deu-me tempo ilimitado, fiquei até Setembro. E depois Novembro e Dezembro. O mais interessante foi o quase desleixo na fronteira, toda a gente muito alegre. Uma alegria geral, as pessoas falavam umas com as outras na rua, a partilhar uma grande alegria. Não era o momento de pensar em coisas tristes ou no que não ia acontecer, mas de conviver.
Como era o ambiente no avião?
Calmo. Grande parte das pessoas vinha preocupada, não sabia o que ia encontrar. Os emigrantes não estavam muito contentes, a revolução podia significar uma perda de dinheiro ou uma mudança para pior, uma divisão do que tinham com outros. Dizia-se que os comunistas iam nacionalizar as panelas de pressão.
Na altura o livro não teve eco em Portugal. Porque decidiu publicá-lo agora?
A editora é que decidiu, eu não decidi nada. Nos anos 80, um editor, o proprietário da Estampa, chamado Espinheiro, pediu para ler o manuscrito. E foi sincero, dizendo: ‘Agora publicar isto? Nem daqui a dez anos, talvez nem daqui a 20’.
Disse saber que a Revolução ia acontecer. Como?
Não era só eu. Havia uma infinidade de pessoas. Só não sabíamos a hora. Palavra de honra. Uns dias antes havia uma onda de gente que sabia o que ia acontecer. O Golpe das Caldas foi um ensaio, a coisa estava para acontecer a qualquer momento. No Apolo 70, em Lisboa, todas as noites se reuniam oficiais aos gritos. Não inventei nada. Mas a história da carochinha é mais interessante e mais vendável.
No livro tece grandes críticas tanto a Mário Soares como a Spínola. Porquê?
O Spínola deixemo-lo em paz, que já faleceu. Mas o Mário Soares é uma pessoa cuja história ainda está para ser contada. Ainda não houve historiador nenhum que a fizesse. Mas daqui a 10, 20, 50 anos, vai ser contada a história completa da acção do senhor Mário Soares. E a maioria das pessoas vai ter uma imagem diferente, consequente com os seus interesses e das pessoas que o rodeiam, mas nada consequente com os interesses da nação.
No livro salienta que as críticas que tece são ao político, não ao homem, que diz que deve ser um homem bom. Diz que ele era o único advogado a aceitar defender os comunistas detidos pela PIDE. Mantém?
Sim, não são ao homem, é simpático. Há o burguês que o senhor Mário Soares é, com as qualidades e os defeitos de uma certa classe, que defende os interesses de uma certa classe, e de uma certa maneira de pensar e de ser. Como político, para mim, não tem interesse porque não tratou dos interesses do país.
Escreve que o país não pode ser propriedade de uns nem um negócio entre compinchas. Na altura referia-se ao PS, ao PPD, militares, comunistas… Mantém a frase 40 anos depois?
Mantenho. Este país continua a pertencer a um número reduzido de pessoas com enorme poder sobre o resto. Não é para isso que se faz uma revolução. É para consertar o que está errado. Não se consertou nada. Até melhorou a situação dos senhores do passado, que estão mais ricos e têm mais poder. É estranho e ilógico que isso seja consequência de uma revolução.
Assinou o livro em Outubro de 1975. Por um mês não assistiu ao golpe do 25 de Novembro. Mas acompanhou o Verão Quente. Como via o futuro nessa altura?
Os dados estavam lançados, as pessoas estavam a tomar as posições que supunha que iriam tomar e assim foi. Não houve surpresa, nem com o golpe nem com os governos que vieram depois.
Como têm sido as reacções ao livro?
Carinhosas. Houve uma nota negativa de um senhor que disse que eu não tinha que pôr o nariz no facto de o Álvaro Cunhal ser família do ministro do Interior do Salazar. Disse que eram cunhados. O Álvaro Cunhal é uma pessoa respeitável e o ministro Rapazote também. Estavam em campos opostos mas eram família.
No livro mostra que a burguesia portuguesa é um mundo pequeno…
Se fosse uma família estaríamos a falar de incesto. Há uma relação incestuosa entre os políticos e os intelectuais, família disto e daquilo. É uma gente que gira toda dentro da mesma panela. E quando há alguma diferença, há sempre um amigo no meio que junta as duas partes. Não há posições definidas. Há um caldo, uma sopa, em que essa gente se mexe.
Faz um apanhado da História de Portugal e diz que só aos 20 anos percebe que o que lhe foi ensinado na escola não era verdade. Porquê?
Sempre li a imprensa estrangeira, que me dava uma visão de Portugal diferente do que supunha ser a verdade nacional. Não queria que o meu país fosse descrito daquela maneira, mas ao mesmo tempo constatava a realidade. Tinha um conhecimento negro da miséria em Portugal, a maioria das pessoas na nossa aldeia era extremamente pobre. Durante semanas comiam pão e cebola, pão e cebola, pão e cebola, azeitonas e couves. E mais nada. Hans Christian Andersen veio a Portugal nos fins do séc. XIX e disse que encontrou uma pobreza maior do que tinha visto na Rússia. A pobreza em Portugal era trágica. Havia uma grande situação de dependência em relação aos que tinham alguma propriedade, dinheiro ou poder. Em Mogadouro, no ano passado, houve uma mudança de presidente da Câmara, que estava na posse de uma família há mais de 150 anos, iam passando de pais para filhos o cargo de presidente da Câmara. Até ao ano passado, em que terminou uma dinastia camarária em Mogadouro. Há três portugais: o de Lisboa, Sintra, Cascais ; o da a faixa costeira; e aquele que os lisboetas costumam dizer ‘é longe’.
Nasceu em Vila Nova de Gaia, onde cresceu, mas é de ascendência transmontana. Saiu de Portugal aos 20 anos. Porquê?
Não aguentava mais viver aqui. Sentia a minha falta de direitos e não suportava, como não continuo a suportar, a desigualdade entre as pessoas baseada na posse, no dinheiro, no poder. Sou incapaz de respirar num ambiente em que não posso viver com dignidade. Fui-me embora.
E foi para Paris. Como foi chegar lá?
Foi um sonho realizado. Era tudo muito livre, agradável, alegre, duma alegria citadina, na rua, que eu não conhecia. As nossas ruas, até há pouco eram, ou ainda são, tristes ou tristonhas, as pessoas metidas em si. Em Amesterdão tem-se a ideia de que toda a gente na rua anda aliviada. Há uma alegria que não há em Lisboa ou no Porto. Sinto que a alegria que vejo no Porto, ou em Lisboa, é quase de imitação. Não é baseada numa liberdade ou ausência de dificuldade. É construída para poder aguentar. Em Amesterdão, Paris ou Estocolmo há uma ligeireza de existir que não se sente num país pobre.
Quanto tempo esteve em Paris?
Seis anos. Tive a sorte de poder trabalhar para um jornal brasileiro, o Correio Paulistano. Comecei por escrever sobre cinema, a minha paixão.
Depois vai para o Brasil…
A ida para o Brasil foi para lá e para cá, ia um mês, voltava a Paris, ia a Nova Iorque… Trabalhava para o Globo, para o Correio Paulistano, para a Manchete, escrevia para jornais mexicanos… A gente tem que ganhar a vida, nada nos é dado de graça. E um dia pediram-me para ir a Amesterdão, o adido comercial da embaixada [do Brasil] estava mal e há muito tempo que não fazia relatórios. Disse: ‘Vou mas não fico mais de duas semanas’. O mais a Norte que tinha ido era Bruxelas e achei horrível. As duas semanas tornaram-se três, encontrei uma menina e estava o meu destino selado. Fiquei.
E na embaixada?
Três anos. Depois zanguei-me. O meu patrão queria que o ajudasse a fazer uma trafulhice de facturas e eu disse que não. Disse-me: ‘Então demito você, tem duas filhas, vai ter problema’. Ao que respondi: ‘Não vou ter problema nenhum e você não me demite, eu vou-me demitir’. Queixei-me ao embaixador que me disse: ‘Não posso fazer nada, vocês são do ministério do Trabalho e eu sou do ministério dos Negócios Estrangeiros’. Lavou as mãos, fiquei na rua. Passei dois anos de travessia do deserto, vendendo revestimento para telhados, navios, café, grão, trigo…
Como vai dar aulas na universidade?
Um senhor, catedrático de Português com quem tinha amizade, tinha iniciado um departamento de Português na universidade e disse-me: ‘Você não pertence ao negócio, pertence à Universidade’. Comecei logo a dar aulas e fiz, em dois anos, uma licenciatura de quatro, em Literatura Portuguesa e Brasileira. Fiquei lá até 88, quando me reformei.
Com que autores conquistava os alunos?
Com os essenciais, Vieira, Camões, Eça de Queirós. Os meus favoritos.
Disse que foi por sua causa que se começou a editar o Eça na Holanda. Como?
Em 1988 ou 1989, fiz um guia de Portugal [Portugal, Um Guia para Amigos], um sucesso, ainda é uma obra de referência. A editora ganhou tanto dinheiro que o editor, que era meu amigo, pergunta-me: ‘Queremos dar-te um presente, o que é que te podemos dar?’. Ao que respondi: ‘Podiam editar cinco ou seis romances de Eça de Queirós’. Então fizeram isso. Eça de Queirós ficou como uma referência. Sem vaidade, na Holanda, há quatro portugueses: o Fernando Pessoa, Eça de Queirós, o José Saramago e o José Rentes de Carvalho. Não é mau. Dá-me alegria, porque eu escrevo sobre a nossa terra.
É cá que publica os primeiros livros…
Os primeiros dois romances foram publicados pela Prelo, que era do Partido Comunista. O primeiro romance foi um sucesso, elogiado pelo José Saramago. No segundo disseram que eu nem sabia conjugar os verbos. Agora quando foi editado na Holanda acharam que era uma obra-prima. Em Portugal, há três anos, também. É o vento.
Magoou-o?
Não. Logo no ano seguinte fiz um livro sobre os holandeses [ Com Os Holandeses] que ainda se vende hoje e que é outra obra de referência, muito elogiado e citado. Eles não têm a sensibilidade que nós temos de tomar a crítica sempre como uma acusação ou um insulto. Dizem: ‘Se ele diz que somos assim então somos capazes de ser’.
Foi o primeiro livro que publicou na Holanda. Como surgiu?
Tinha uma relação de amizade muito forte com o meu editor, muito bem educado, culto, lia que se desunhava. Já não sei por que nos encontrámos, mas ficámos amigos. Saía do Instituto e ia tomar café com ele. Um dia, não sei o que me tinha acontecido, qualquer coisa irritante ou má, e desatei a insultar o povo holandês e ele ouvia e não dizia nada, sorria. No fim, diz-me: ‘Porque não escreves isso?’. ‘Porque vocês são tão hipócritas, tão sacanas, que o que teria para escrever seria tão violento que não vos dou essa honra’. Separámo-nos e três dias depois recebi uma carta da editora – com quem não tinha relação além da amizade, já tinha sido editado em Portugal com o Montador, e o Rebate, mas ali não. A carta tinha um cheque e um cartão: ‘Este é o adiantamento dos direitos que vais receber quando escreveres o livro sobre nós’. Deitei-me a escrever.
Como foi recebido?
De maneira sensacional, no princípio tinha páginas inteiras na imprensa holandesa, não a primeira, mas a terceira ou quinta página. Isso manteve-se muito tempo. A única crítica negativa que tive foi de uma senhora grega, que mandou uma carta a um jornal dizendo: ‘Se ele não está bem aqui que se mude e vá para a terra dele’. De resto tem sido sempre muito bem recebido, é muito mencionado e citado. O primeiro-ministro holandês, no ano passado, recebeu uma delegação da União Europeia, com o senhor Durão Barroso e começou o discurso – que está na internet – com uma citação minha dizendo: ‘Temos um português que escreveu isto sobre nós’ e termina o discurso também com uma citação do livro. Por isso, está a ver, o livro ainda is alive and going well.
E os outros seus livros, também foram bem recebidos na Holanda?
Tão bem que eles já acham que sou um escritor holandês.
Como é ter tanto sucesso na Holanda quando nem era publicado em Portugal?
É um grande consolo.
Apesar de não ser editado em Portugal, foi agraciado com o grau de comendador da Ordem de Infante D. Henrique, por Mário Soares em 1991. Como?
Um dia o senhor embaixador de Portugal na Holanda ligou-me e disse: ‘Oh José, você importa-se de receber uma condecoração?’ Perguntei porquê. ‘O Presidente acha que você deve receber’. Creio que foi por ouvir dizer da Rainha da Holanda que havia um escritor português muito conhecido. O Governo português nem sabia que eu existia. Nesse Natal mandou-me uma fotografia dele, com um uniforme de gala, onde estava escrito: ‘Ao meu amigo José Rentes de Carvalho, Mário Soares com um abraço’.
Veio cá receber a condecoração?
Não, o embaixador trouxe os pendericalhos de Lisboa e pôs-me isso ao peito.
Teve algum significado para si?
Não. O embaixador perguntou se eu gostaria de ter uma festa, eu disse que não. Ofereceu-nos o almoço, convidou os embaixadores do Brasil, de Angola, de Cabo Verde e de Moçambique e um outro embaixador que já não sei quem era, a minha mulher, eu, o meu editor e a mulher dele.
Chegou a falar com Mário Soares?
Sim, uns cinco anos depois, já o Mário Soares não era Presidente, outro embaixador telefonou-me: ‘Vem aí o Mário Soares e insiste para que o convide para almoçar’. Lá fui. Esteve o almoço todo a falar da sua obra política em Portugal. Ouvi e não respondi. Só saí de lá cansado.
Também esteve com Jorge Sampaio.
Quando o Jorge Sampaio foi em visita de Estado à Holanda, a Rainha mandou um convite para mim e para a minha mulher, para um jantar. E lá fomos. Você entra, o lacaio anuncia o nome da pessoa, a Rainha está ali junto com o Presidente e você faz vénia à Rainha, aperta-lhe a mão e ao Sr. Sampaio e à mulher. E quando cheguei junto da Rainha Beatriz ela disse ao Presidente: ‘You know mr. Carvalho, don’t you?’. Coitado, fazia lá ele ideia de quem era o sr. Carvalho. Na noite seguinte, o Presidente Sampaio retribuiu o jantar da Rainha. Eu e a minha mulher também fomos convidados. Num determinado momento está o António Esteves Martins, da RTP, e o Jaime Gama, que era então ministro dos Negócios Estrangeiros, e estou eu. E o Presidente Sampaio vem com a Rainha, a caminho do buffet. A Rainha olha para mim e acena com a mão. E o Jaime Gama pergunta: ‘Ela conhece-o?!?’. São instantâneos.
E como conhecia a Rainha?
O pai dela era alemão. E quando o meu livro sobre os holandeses foi editado ele mandou dizer, ou ele próprio disse ao embaixador de Portugal dessa altura: ‘Eu, alemão, como estrangeiro neste país, acho que ele tem razão’. E daí se estabeleceu uma espécie de cortesia e eu recebia convites para festas no palácio. A vez mais excepcional foi quando eu, a minha mulher, o embaixador Cascais e duas outras pessoas, fomos convidados para almoçar no palácio da Rainha, não onde ela trabalha mas na residência. Isso foi muito bonito.
Começa a ser editado em 2011 em Portugal pela Quetzal. Como?
Houve um intercâmbio de escritores portugueses e holandeses e o Fernando Venâncio, o herdeiro da minha cátedra, convidou-me para jantar com o grupo. Calhou ficar ao lado do Francisco José Viegas e estivemos a conversar. E ele reparou que eu tinha umas ideias heterodoxas. No dia seguinte fizemos uma entrevista grande para a Ler e, depois, não aconteceu nada. Até que em 2008 ele foi à Holanda outra vez e disse-me: ‘Eu agora tenho possibilidade de o editar, se quiser’. Está bem.
Foi bom ter o reconhecimento do seu trabalho em Portugal?
Sim. É uma espécie de regresso a casa. Sou reconhecido na Holanda, tenho proveito do meu reconhecimento, tenho muito nome na Holanda, sinto-me bem na Holanda, mas eu escrevo em português, para a minha gente.
Escreve sempre em português?
Sim. Depois são traduzidos. Podia escrever em francês, em holandês, em inglês, mas nada me dá a mesma satisfação. Nem tenho a mesma maleabilidade da língua.
Passa muito tempo em Mogadouro. Recuperou a casa dos seus pais da aldeia?
Era do meu avô que era sapateiro e, sozinho, construiu uma casa para a filha. A casa foi habitada pelos meus pais quando se reformaram, depois o meu pai faleceu em 1983 e a minha mãe em 1997. Quando a minha mãe faleceu a casa estava a começar a ter bocados de ruína. E a minha mulher e eu dissemos: ou prestamos homenagem ao homem que a fez e a recuperamos ou a deixamos cair e nunca mais cá voltamos. Decidimo-nos pela recuperação e iniciámos, em 1999, um ritmo de passar três meses na Holanda e três meses em Estevais de Mogadouro.
Como passam a sua mulher, as suas filhas e os seus netos holandeses o tempo numa aldeia portuguesa?
Passam pouco tempo, a casa é pequena. Quando vêm têm um turismo rural que a gente aluga e eles vão para lá. Da primeira vez que os meus netos vieram a Estevais com algum conhecimento da vida, a rapariga teria dez anos e o rapaz oito, chegaram, ouviram, calaram e no dia seguinte perguntaram: ‘onde é a praia?’ De resto, tudo bem. A minha mulher vem cá desde os anos 60. Sente-se como peixe na água. Gosta muito de Portugal. Talvez até mais do que eu. Ela não vê o que eu vejo. Tem mais empatia para com a situação das pessoas e para o sistema de vida que eu, que tenho o pecado de ter nascido aqui, vejo as coisas com mais crueldade ou mais frieza. Ela vê com carinho. A minha família é toda holandesa, eu sou o único português. E sou o último, tenho filhas na Holanda e netos, mas em Portugal vou deixar de existir, não deixo semente.