Sírios mobilizam Portugal

Há quase dois meses em Portugal, os 42 sírios que estudam nas universidades e politécnicos do país dizem estar a recuperar “a esperança no futuro” que a guerra lhes roubou. A estes deve juntar-se em Setembro mais um grupo de jovens com bolsas de estudos da plataforma criada por Jorge Sampaio para apoiar 800 jovens,…

A associação criada pelo ex-Presidente da República está a mobilizar recursos e parcerias num país em crise, de uma forma inédita. O objectivo é alargar o apoio aos estudantes em Portugal e nos outros nove países que já aderiram ao projecto. Um espectáculo no Meo Arena a 30 de Setembro, onde músicos portugueses actuarão gratuitamente, e três jantares de angariação de fundos feitos por prestigiados chefs com estrela Michelin são os próximos passos.

“Estamos a preparar uma nova vaga de recolha de donativos”, explica ao SOL Helena Barroco, assessora de Sampaio e membro da associação criada em Portugal para dar corpo ao projecto: a Associação Plataforma Global para os Estudantes Sírios (APGES). Além do ex-Presidente, esta reúne figuras como Manuela Ferreira Leite, Marques Mendes, Carlos Monjardino e o embaixador António Franco.

Cada bolsa custa seis mil euros por ano

“Tivemos um primeiro jantar com chefs com estrela Michelin, no Hotel Palácio, no Estoril, que superou as nossas expectativas, reunindo 120 pessoas”, conta Helena Barroco, revelando que foi possível garantir 30 mil euros para financiar as bolsas. O próximo jantar está marcado para o Porto, a 25 de Julho, no Hotel The Yeatman, com o chef Ricardo Costa.

É numa conta bancária aberta em nome da Fundação Oriente, outra parceira da APGES, que são recolhidos os fundos para as bolsas. “Neste momento, temos cerca de 150 mil euros na conta, que está aberta a contribuições”, confirma ao SOL Carlos Monjardino, presidente da fundação. Mas “é preciso mais” para os objectivos do projecto, que quer chegar a pelo menos 800 estudantes sírios. Monjardino preside às assembleias-gerais da APGES, que costumam realizar-se, em Lisboa, no escritório do advogado Miguel Galvão Telles, outro dos membros.

Uma bolsa anual para cada estudante em Portugal custa seis mil euros: 500 euros por mês para alojamento, alimentação e transportes, sendo as propinas oferecidas pelas universidades e politécnicos.

Foi com o financiamento de instituições e personalidades do país e de todo o mundo – desde a poderosa família saudita Al-Muhaidib e a Liga dos Estados Árabes, até ao grupo Delta – que a ideia de Sampaio de apoiar as vítimas do conflito ganhou corpo em tempo recorde.

O primeiro cheque a cair na conta, no valor de 50 mil dólares, chegou da Liga dos Estados Árabes. A esta instituição juntou-se o Conselho da Europa, no núcleo- duro que fez arrancar o projecto. Tudo começou no início do ano passado, quando Jorge Sampaio abandonou o cargo de Alto Representante da Nações Unidas para a Aliança das Civilizações. Mais tarde, por indicação que lhe chegou da Fundação Clinton, a Plataforma ganhava a um parceiro norte-americano: o Institute of International Education, que tinha um programa de apoio a estudantes no Iraque e queria intervir na Síria.

Desde aí, a lista de parcerias não parou de crescer. A Fundação Calouste Gulbenkian, a Carnegie Foundation e a Fundação Al Batain são algumas das instituições que já anunciaram o seu apoio ao projecto, que envolve dezenas de instituições de ensino superior em dez países, garantindo propinas gratuitas aos estudantes sírios seleccionados, entre 2.500 que se candidataram. Em Portugal, estão envolvidas mais de 15 universidades e politécnicos, desde a Universidade de Lisboa ao IADE, passando pelas universidades do Minho, Aveiro e Beira Interior, ou ainda o Politécnico de Bragança.

Fugir para continuar a estudar

Um ano após o lançamento formal do projecto, aterravam em Figo Maduro, num C-130 da Força Aérea portuguesa, os primeiros 42 sírios com uma autorização de residência por um ano, renovável por mais um, concedida pelo Governo português.

Israa Alkahwaji estava entre eles. A síria de 26 anos tenta, na Universidade de Évora, terminar o curso de Engenharia Agrícola que foi obrigada a interromper há quase dois anos na Universidade de Damasco, porque a guerra paralisou o ensino do país. “Felizmente, consegui sair da Síria a um ano de terminar a licenciatura [de 5 anos]”, conta a jovem.

A bolsa deu-lhe nova esperança para concretizar os seus sonhos: acabar o curso para poder regressar à Síria e ajudar a reconstruir o país, “modernizando a agricultura, que é um dos seus pilares económicos”.

Também para Heba Ismaeli, de 27 anos, esta é uma oportunidade única. “Nunca pensei poder estudar no estrangeiro, ainda mais numa universidade tão prestigiada”, diz a jovem, que está a fazer cadeiras para o mestrado em Finanças no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), em Lisboa.

Em Damasco, onde nasceu, deixou o noivo, a família e o pai, que viu chorar pela primeira vez quando se despediram no aeroporto de Beirute (Líbano). “Só queria que as mortes acabassem, mas tento concentrar-me nos estudos e aproveitar esta oportunidade”, diz, ao SOL, acrescentando que consegue contactar a família através das redes sociais ou do Skype e vai seguindo as notícias do país através da BBC online.

Começa também agora a orientar-se melhor em Lisboa, seguindo à risca as indicações da aplicação Maps no telemóvel, e a conhecer melhor os colegas, com quem fala em inglês. Tem também tido o apoio de uma estudante da Universidade de Lisboa, voluntária na Plataforma, que a ajuda com as tarefas mais complicadas.

Móveis de hotel nas residências dos estudantes

Dezenas de voluntários anónimos têm, aliás, sido a base do projecto no terreno.

Um dos apartamentos de Lisboa onde vivem duas estudantes foi emprestado à Plataforma por um benemérito. As outras duas residências universitárias, criadas em Lisboa e no Porto, funcionam em dois apartamentos cedidos pelo Montepio, com quem a associação fez um contrato de comodato.

“As mobílias de quarto, camas e mesa de cabeceira vieram do velho hotel Monte-Estoril, que estava fechado há vários anos e que a fundação vendeu na semana passada”, conta Carlos Monjardino. Outros móveis foram cedidos pela Ikea e os tachos e panelas foram dados pela Silampos, por exemplo.

Outros apoios chegam também de voluntários anónimos que ajudam os estudantes a integrar-se ou acompanham-nos aos fins-de-semana – como uma reformada de Lisboa que se ofereceu para levar a Fátima dois sírios católicos ou os sete universitários que estão encarregues de apoiar os colegas sírios em pequenas tarefas.

A estes, juntam-se organizações com os Rotários do Porto (clube que reúne líderes de empresas e profissionais): aos fins-de-semana, são eles que têm acompanhado os 10 estudantes sírios que vivem na invicta. Foi com eles que Anas, de 23 anos, ficou a conhecer a cidade de Vila Real. “A viagem foi óptima e vimos sítios lindos, especialmente quando conseguimos ver o rio Douro, lá em baixo” – conta ao SOL a síria, que está a fazer um mestrado em Gestão na Universidade Lusófona do Porto.

A assessora de Sampaio, Helena Barroco, sintetiza o segredo deste projecto: “Esta iniciativa é uma soma de boas vontades. É esta a chave do seu sucesso”.

joana.f.costa@sol.pt