A genealogia da liberdade

Acho que sobrevivi à vaga celebrativa dos ’40 anos’ que quer fazer do golpe de Estado do MFA e da balbúrdia que se lhe seguiu uma espécie de nova Revolução Francesa de gloriosas proporções. Para alguns – pasme-se – o maior acontecimento da história de Portugal!

Talvez porque o estado crítico do país não justifique celebrações, os partidários e simpatizantes de Abril esforçaram-se ainda mais por enaltecer-lhe os méritos: além de demonizarem o ‘fascismo’, procuraram exaltar os sucessos da III República, que só não irá tão bem – é a mensagem subliminar ou expressa – por causa da austeridade imposta pelos ‘governos de direita’, oportunamente assimilados ao ‘fascismo’, derrubado há 40 anos.

Além de não se poder abrir uma gazeta sem deparar com legiões de antifascistas das mais legítimas e variadas cepas e com uma vaga editorial requentada de petite histoire revolucionária, alguns capitães ressuscitaram dos almoços da Associação do 25 de Abril, para lembrar que são os donos da revolução, da democracia e do regime.

Mais subtis e modestos, outros patriotas sublinham a liberdade como o produto da efeméride. A liberdade e a democracia seriam os frutos de Abril, os únicos.

Pois que sejam. Mas não foi bem assim, ou não foi logo assim: as decisões mais importantes e condicionantes do futuro do país foram, há 40 anos, tomadas por colectivos pretorianos anónimos e pelos seus inspiradores e cúmplices civis, sem qualquer consulta popular ou deliberação democrática.

A descolonização não passou de um abandono puro e simples que vitimou não apenas os portugueses de África, mas também os povos que os governos provisórios de Lisboa deixaram herdeiros de longas guerras civis.

As nacionalizações de Março de 1975, que socializaram arbitrariamente a economia nacional, contribuíram para a ruína das empresas e do país.

Entre o 25 de Setembro de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, muitas centenas de cidadãos, designados pelos comunistas e seus aliados do MFA como suspeitos, foram detidos e perseguidos sem qualquer culpa formada. O pacto MFA-Partidos instaurou uma tutela pretoriana sobre o país e o sistema político e excluiu a direita.

O regime derrubado há 40 anos não se proclamava democrático nem fingia sê-lo. Justificava-se como reacção à ‘ditadura de rua’ dos democráticos, pelo anticomunismo e pela defesa do Império. Eram argumentos de um Estado autoritário que, por isso mesmo, era marginalizado pela Europa democrática.

A esquerda revolucionária de 1974-75 – comunistas, maoístas e civis e os seus aliados e instrumentos militares – também negou a liberdade aos que considerou ‘inimigos do povo’. Os brandos costumes nacionais, as regras de Ialta e a resistência popular no Norte e no Centro, impediram consequências mais graves. E, em 25 de Novembro, os Comandos de Jaime Neves tiveram mais força que os esquerdistas da PM e de Tancos.

É bom que se lembrem estas coisas, até porque foi delas – e não do 25 de Abril – que resultou a liberdade.