É o próprio Ferrara, num hotel de Cannes, que nos explica o que o trouxe para o centro deste carrossel mediático: “Quando este episódio aconteceu em Nova Iorque, tornou-se um grande evento a que ninguém podia escapar”. Ainda assim, o realizador apresenta a sua obra como uma ficção – os créditos ilibam-no de “qualquer semelhança com a realidade”.
Welcome to New York não entrou em competição e, ainda assim, constituiu um dos seus momentos altos. O 'ovni' que gerou tanto burburinho aterrou num sábado à noite num dos bares de praia da famosa avenida Croisette. A custo, conseguimos furar através das inúmeras equipas de reportagem presentes e instalamo-nos na sala improvisada para ver o filme-bomba que prometia fazer esquecer o sururu causado por Grace de Mónaco. À sessão, quase clandestina, de Video on Demand, seguiu-se um encontro para a imprensa com o realizador e os protagonistas.
Whisky com gelado e prostitutas
Bastam escassos minutos de fita para se revelarem os motivos que terão levado os programadores do festival a deixar a 'bomba' de fora da competição. Depardieu encarna Georges Devereaux, um banqueiro avantajado e metódico que não resiste a um rabo de saia. Terminado o dia de trabalho, entrega-se a uma pequena orgia numa suite de hotel. E na altura em que Depardieu exibe o seu imenso corpo nu e se entrega a sexo violento e viril já esquecemos o rosto do banqueiro real. O bacanal inclui álcool que escorre pelos corpos e um batido de whisky com gelado. Com uma câmara endiabrada, o realizador de 63 anos filma prostitutas, nudez frontal e algumas palmadas. No meio dos jogos de sedução, avistamos Drena De Niro, a filha de Robert, na função de dominadora.
No retrato de Ferrara, Devereaux é um animal com cio – excitado pelo poder do dinheiro, dá verdadeiros urros de prazer. Já no quarto ao lado, a situação evolui para um ménage à trois com duas russas, dando a Depardieu a oportunidade de mostrar que já aprendeu algumas palavras de russo.
Em seguida, o monstro viciado em sexo confronta-se com a camareira que entra para arrumar o quarto, e ainda lhe restam forças para a obrigar a uma sessão de sexo oral. “Sabes quem eu sou?”, pergunta-lhe.
“É evidente que houve algum prazer em mostrar essa luxúria”, revela Depardieu no encontro com a imprensa que se segue à projecção. “Embora neste caso se tratasse de uma doença. Uma doença, diga-se, com todos os elementos de uma das grandes tragédias deste século”.
A partir do encontro com a camareira, já não há dúvidas sobre por que Strauss-Kahn se sentiu visado. Os efeitos deste tornado não se fizeram esperar. Logo no dia seguinte, Anne Sinclair, a sua ex-mulher, mostrou-se chocada. Recusando-se a processar o filme, atirou: “Eu não ataco o filme; vomito nele”. Na segunda-feira de manhã, foi a vez de o advogado do antigo presidente do FMI declarar que o seu cliente não vira o filme, mas iria processá-lo com base nas várias insinuações presentes feitas. E ainda teve tempo de classificar as acusações de violação como “uma merda, verdadeiro cocó de cão”.
Na parte da tarde, um inquieto Ferrara já está preparado para tudo. E partilha o conselho que recebeu dos seus advogados: “Pediram-me para ser cauteloso com o que digo em entrevistas”. Algo impossível. E adianta: “Sou um artista, tenho liberdade de expressão. E tenho essa liberdade também como indivíduo. Não abdicarei desse direito”. Precisamente por não abdicar, não cumpriu com “a lista interminável de alterações”, que lhe foi sugerida para que o filme pudesse competir no festival. “Não preciso que o meu filme seja visto por pessoas com smokings alugados e desfilar na passadeira vermelha”, diz em tom provocatório. “Tanto se me dá que o filme seja visto no cinema como na televisão, pagando sete euros, ou até no telemóvel… O espectador vê o filme e o filme passa a ser seu”.
Agora que aguarda a iminência de um processo judicial, revela alguma cautela: “Não me agrada ser processado. Não precisava disso, já tenho problemas que cheguem”. Mas parece decidido a não ceder. “Não me vou deixar abalar. O filme continuará a existir, bem como o desempenho de Gérard”. E aproveita para comparar o seu destino com o de Pasolini, que recorda que também “foi preso quando acabou de fazer um filme”. De resto, Pasolini é o título do seu próximo filme, que terá Willem Dafoe no papel do malogrado realizador, e ainda a portuguesa Maria de Medeiros, no papel da sua amiga actriz, Laura Betti. Ferrara acredita que Pasolini será apresentado em Setembro no festival de Veneza.
Triângulo shakespeariano
Uma das principais motivações para Depardieu subir a bordo deste projecto foi, diz-nos o actor, “o prazer de poder abordar um tema que deliciou os media. Sobretudo quando falamos de sexo, poder e dinheiro como se fosse algo shakespeariano”. As cenas de sexo explícito são encaradas com naturalidade: “A verdade é que não se vê nada, é só a fingir”. Mas faz uma ressalva maliciosa: “É certo que, no meu caso, fingir é algo muito difícil. Basta ver os meus filmes”.
Apesar da violência das cenas, Depardieu recusa-se a considerá-las pornográficas: “Para ser porno temos de ver o grande pénis!”, explica com o punho em riste. “Isto não é porno, é uma história verídica. Mas a fingir. Eu odeio a violência. E odeio o que faço com as raparigas no filme”.
O lado mais gráfico e até brutal do filme tem no entanto o seu contraponto: Jaqueline Bisset, no papel da esposa abnegada e à procura de uma réstia de amor deste viciado em sexo. Depardieu aplaude – “Bravo Jacqueline!” – mas o seu personagem, a sós com a mulher, em prisão domiciliária, recusa a redenção. Uma curiosidade: Ferrara filmou Depardieu e Bisset no mesmo apartamento em que esteve o detido.
Acima de tudo, actores e realizador encaram Welcome to New York como um desafio, uma vez que ninguém sabe ao certo o que sucedeu. “O que fizemos foi uma improvisação”, diz Depardieu, que define as filmagens como “um verdadeiro campo de batalha onde o tempo passa e a verdade começa a impor-se. Eu estava num processo suicida de auto-destruição. Nesse sentido, esta aventura foi única”.