“Tal como a ostra faz pérolas para se defender dos parasitas, estas pessoas também faziam pérolas [obras de arte] para sobreviver”, compara António Saint Silvestre, guiando o SOL pelo primeiro piso do núcleo, onde se situa a arte bruta num sentido mais estrito, segundo os critérios do comissário Christian Berst. Considerado um dos maiores especialistas mundiais nesta matéria, Berst considera que se está perante a “última aventura da arte do século XXI”. Um dos nomes clássicos desta forma de expressão é Henry Darger: apenas a sua morte, aos 81 anos, permitiu revelar um manuscrito com mais de 15 mil páginas de texto e ilustrações (escondidas debaixo da cama), descrevendo a guerra das chamadas Vivian Girls contra os adultos opressores, onde é impossível não ler referências a uma infância e adolescência passadas num orfanato. A obra – criada ao longo de 60 anos – alterna imagens bucólicas com cenas de tortura e outras em que meninas são representadas com órgãos sexuais masculinos.
Para aproveitar o máximo de papel, Darger pintava dos dois lados, tal como o suíço Adolf Wölfli: abusado em criança, institucionalizado e depois condenado por pedofilia, passou a maior parte da vida num hospital psiquiátrico, em que aproveitava qualquer pedaço de papel e pontas de lápis de cor para criar o seu próprio universo. “Só muito recentemente é que a arte bruta ficou na moda, porque o mercado está farto de instalações, de não-arte… A única coisa que encontraram foi a arte bruta, que já tem 500 anos, mas que não obedece ao mercado e com a qual não é possível fazer especulação”, explica António Saint Silvestre.
Técnica quase perfeita
O coleccionador também nota que o público em geral associa o termo 'bruto' a uma “coisa tosca e mal feita”, algo que se apressa a desmistificar, usando exemplos como o de Joseph Crépin. O francês – que acreditava ouvir vozes e ter poderes sobrenaturais – foi canalizador e mineiro antes de iniciar a pintura de imagens de templos, de forma perfeitamente simétrica. A sua actividade iniciou-se em 1938 e, depois do início da Segunda Guerra Mundial, convenceu-se de que o conflito só terminaria quando completasse 300 obras, o que aconteceu a 7 de Maio de 1945, dia em que os alemães assinaram a rendição em Reims. O seu estilo implicava o uso de pequenas gotas de tinta e “ainda hoje não se sabe como ele as formava de forma tão perfeita”.
Edward Deeds é outro caso de uma técnica quase perfeita: conhecido inicialmente como 'The Electric Pencil' (lápis eléctrico), realizou uma série de 283 desenhos a lápis cuja precisão parece maquinal. Todos eles foram efectuados no verso de formulários do Missouri State Hospital N.º 3, nos Estados Unidos, uma unidade psiquiátrica onde passou 50 anos. Nesta exposição, tanto o verso como os desenhos estão visíveis.
Há muito mais para ver nas antigas instalações metalúrgicas da Oliva, que o Município de S. João da Madeira resgatou e recuperou. Podemos dar o exemplo do francês Jean Perdrizet, um suposto inventor que viu os seus complexos projectos, repletos de fórmulas matemáticas, serem ignorados pela NASA e pelo Vaticano, mas considerados arte. No piso térreo do núcleo, onde se encontra arte contemporânea e singular, há ainda os casos-limite de artistas autodidactas que de alguma forma se integraram no mercado, 'fugindo' assim ao carimbo de arte bruta. O kitsch das conchas e corais pintados de Paul Amar, um conjunto de peças de arte vodu do Haiti e até uma obra do próprio António Saint Silvestre – representando a trindade 'religião, futebol e política' em Portugal – contribuem para uma perspectiva abrangente deste género.
A maior colecção da Península Ibérica
Durante 20 anos, Treger e Saint Silvestre foram proprietários de uma galeria em Paris, mas o objectivo de gozar uma “pré-reforma” em Portugal levou-os a estabelecerem-se em Lisboa e a procurarem um local no país para acolher a colecção. Após uma longa espera, foi com surpresa que, há três anos, receberam uma chamada de Castro Almeida (actual secretário de Estado do Desenvolvimento Regional e então presidente da Câmara Municipal de S. João da Madeira), que tinha visto uma parte da colecção no Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva, em 2012. “Pediu para virmos cá, mas não sabíamos nada sobre esta cidade. Vimos que era no meio do nada e dissemos que não. Depois percebemos que é um homem muito interessante, que vê a arte como um motor económico”, recorda António Saint Silvestre.
Arte bruta: transgredindo fronteiras deverá permanecer no espaço durante seis meses, mas está já acordado que o Núcleo de Arte da Oliva Creative Factory mantenha uma exposição de arte bruta permanente, que mostre não só as peças de Treger e Saint Silvestre mas aproveite também os seus inúmeros contactos. “Temos amigos em museus de Nova Iorque, Paris e Lausanne e esperamos trocar exposições. Seremos o único museu do género a Sul de Paris e temos a maior colecção da Península Ibérica. Se tudo correr bem ficaremos aqui para sempre e as coisas vão mexer”, garante Richard Treger.
De resto, Portugal faz parte da história da arte bruta: o médico Miguel Bombarda (1851-1910) foi um dos primeiros, em todo o mundo, a preservar e catalogar as criações de doentes psiquiátricos, mesmo antes de o termo ter sido cunhado em 1945, pelo artista francês Jean Dubuffet. “Nunca fomos atraídos pelos artistas mainstream. O que nos atrai aqui é a sinceridade. Estas pessoas não criam para ganhar dinheiro ou vender, mas por necessidade. Não tem nada a ver com arte industrial ou espectáculo”, sublinha Treger. A dupla continua a procurar, por todo o mundo, aquilo que sai da norma, mas lança um aviso acerca do interesse crescente que a arte bruta tem suscitado: “Quando o mercado precisar, ela vai ser prostituída. Já o está a ser”.