Aliás, se estivéssemos nos Estados Unidos, seria quase inevitável que escritores e produtores de cinema ou televisão tivessem já começado a elaborar ficções suculentas baseadas livremente – sem necessidade sequer de ‘colori-las’ muito mais – nos episódios que se vêm sucedendo sobre o grupo Espírito Santo.
É a história de uma maldição que envolve um grupo bancário, as divisões insanáveis entre a família que o herdou e as múltiplas peripécias – algumas delas tão toscas quanto inverosímeis – que ameaçam fazer ruir os alicerces de um castelo dourado.
Desde a sua já longínqua fundação por um homem de condição humilde até se transformar numa oligarquia com pretensões aristocráticas que se consolidou no tempo da ditadura e voltaria a afirmar uma influência sem paralelo junto dos Governos da democracia – ultrapassados os tempos traumáticos da nacionalização –, a história do Banco Espírito Santo é das mais instrutivas do Portugal contemporâneo.
A própria insígnia do grupo, com a sua aura santificadora, terá feito pairar uma inspiração quase extraterrena sobre os negócios mais comezinhos, enviesados ou mesmo inconfessáveis, além de abençoar uma intimidade cada vez mais opaca com o poder político. Tal como os seus antecessores da era salazarista, Ricardo Espírito Santo Salgado tornou-se o expoente da modernização do BES, com a diversificação acelerada – e nalguns casos descontrolada, como se viria a concluir – das actividades do grupo, enquanto se impunha também como o banqueiro privilegiado do regime democrático.
Foi provavelmente esta relação promíscua de poderes que fez o Espírito Santo voar mais alto do que estaria ao seu alcance, tecendo com os sucessivos Governos uma teia que lhe garantiu uma influência sem rival mas acabaria por enredá-lo num insustentável estatuto de impunidade.
Ora, como se viu com a crise bancária internacional de 2008 – da qual os contribuintes tiveram de pagar os custos incomportáveis –, o desregulamento do sistema financeiro só poderia conduzir a um desastre de proporções idênticas às da recessão dos anos 1930. Mas em Portugal nem os Bancos nem os Governos souberam antever, com um mínimo elementar de precaução, aquilo que se tornaria inevitável.
Com efeito, a banca portuguesa em geral e o BES em particular sustentaram festivamente um surto de despesismo desbragado, desde o crédito imobiliário às aventuras sumptuárias da era Sócrates. Ricardo Salgado apoiava, por palavras e obras, o desvario socrático até que as campainhas de alarme começaram a tocar estridentemente. Então, ele foi dos primeiros a empurrar o primeiro-ministro para a rendição perante os credores externos, julgando que, desse modo, colocaria a salvo os seus próprios interesses enquanto os contribuintes seriam chamados a pagar a factura exigida pela troika («Ai, aguentam, aguentam», como diria outro banqueiro, Fernando Ulrich).
Mas o BES não só não se salvou do descalabro que ele próprio estimulara como foi assaltado pelos seus desvarios e demónios internos – especialmente os dos laços de sangue que, nos momentos críticos, provocam a autofagia familiar.
Ninguém imaginaria que uma instituição com um perfil tão polido e civilizado como o BES se pudesse ter envolvido em mil trapalhadas financeiras e golpes baixos de evasão fiscal, comprometendo a honorabilidade do seu Presidente e outros altos quadros do banco. Nem seria também imaginável que, quando já o Banco de Portugal (BdP), com os pezinhos de lã habituais, arredara a família desavinda da gestão do BES, Ricardo Salgado anunciasse a sua saída por vontade própria e que o seu primo e inimigo de estimação, José Ricciardi, se afirmasse pretendente traído à coroa mas reclamando para si, em jeito de vingança, a posse de uma das jóias familiares, o BESI. Como é possível atingir tais extremos de infantilidade suicidária?
Enquanto a guerra da família entrava em roda livre e Salgado parecia ter conseguido impor o seu braço-direito como sucessor (embora se trate de um dos suspeitos de truques de tesouraria) as acções do BES caíam a pique – 10 por cento – num só dia. Perante os inimputáveis Espírito Santo, o BdP, habituado a correr atrás do prejuízo, chegará a tempo de evitar a hecatombe que nos levará todos a pagar os custos da maldição do banco do regime?