Um pequeno descuido ao fechar a cortina do quarto foi o suficiente para ser acordado por esta luz de Verão. Ontem, nas festas de Serpa, entusiasmei-me com a conversa na companhia de cervejas frescas e acabei por ser empurrado para uma noite longa. Fui para ‘casa’ a pé. A Macal já não tem idade para estas noitadas e por isso ficou a descansar na residencial onde eu estava alojado.
Levanto-me e visto-me à pressa. Deixo tudo no quarto e meto-me a pé pelas ruas. Entro numa pastelaria mesmo na Praça da Câmara Municipal para meter uma queijada de requeijão à boca e despertar com um café. Preparo-me para partir e encho o depósito da motorizada numas bombas dali.
Vou directo para o Pulo do Lobo. Sorrio para os montes e vales que vão ficando para trás e deixo-me ir pelo perfume das estevas e rosmaninhos que dão alma ao alcatrão. Dou por mim no Parque Natural do Vale do Guadiana, cheio de curvas e estradas magrinhas que lhe dão um especial encanto.
Como viajar é encontrar, e nem sempre procurar, visito uma aldeia castiça a caminho do Pulo do Lobo. Na Amendoeira da Serra as ruas estão pintadas com motivos vegetalistas e pequenos apontamentos de animais do campo que trazem jovialidade a uma população claramente envelhecida. Meto conversa com um pastor que me diz: «já chegaram a viver aqui 300 pessoas. Hoje somos para aí 60. Uns morreram e outros partiram».
Esta aldeia é pouco mais que três ruas alinhadas que vão dar ao largo da antiga escola, entretanto transformada no Centro de Interpretação da Paisagem. Este projecto pretende sensibilizar o olhar dos visitantes para o património natural e paisagístico desta região. Volto à estrada. Alguns quilómetros depois deparo-me com um portão que tem uma placa a dizer ‘ao entrar e sair feche o portão por favor’.
Percebo que estou a entrar numa zona reservada à beleza natural e sem grandes movimentações humanas. Desço o vale e chego a uma cascata com cerca de 20 metros. O embate da água numa garganta rochosa, cria um som forte e cavernoso. É um sítio belíssimo. Envolvido por vegetação e lavrado por rochas que desenham as margens. Diz a lenda que havia um lobo que passava de uma margem para a outra num só pulo.
Uma vez que acordei de forma abrupta, nem disposição tive para me preparar como gosto. Este local é ideal para encenar um momento que parece acontecer apenas nos anúncios da televisão. Tiro o champô da mochila e tomo o banho que adiei ao acordar. Faço a barba em frente ao retrovisor da Macal e fico pronto para partir até Mértola. Tenho uns 50 quilómetros pela frente.
O calor parece que me tapa a boca. Os mosquitos invadem a estrada e obrigam-me a pôr os óculos do capacete para proteger os olhos. Tenho algumas curvas pelo caminho, mas estou rodeado de uma paisagem de cortar a respiração.
Atravesso uma ponte alta e começo a subir ruas estreitas e brancas. Vejo-me no cimo de um paredão rochoso onde Mértola foi erguida. O Guadiana vê-se no seu sopé. Foi por causa dele que tantos povos lutaram pelo domínio desta terra.
Por aqui passaram os romanos que construíram uma muralha à sua volta de quinze quilómetros de extensão. No século IX, Ibn Alaude, califa de Beja, voltou a fortificar estas muralhas. Era tão importante para os árabes que a tornaram num emirado independente, a Taifa de Mértola. Só em 1238, durante o reinado de D. Sancho II é que foi reconquistada. Nasceu então o castelo que se ergueu no cimo desta vila – e que viu enterrar os corpos dos árabes sobre as ossadas romanas. Por cima destes povos do passado, caminharam os cristãos até ao dias de hoje, a quem chamamos alentejanos.
Uma vez que o meu dia estava a correr de feição resolvi ficar uma noite em Mértola. Reservei um quarto num hotel situado no centro histórico com vista para o rio. Supostamente seria um hotel normal mas, durante a sua construção, descobriram vestígios arqueológicos de um bairro islâmico e, por baixo destes, um armazém romano. Ficou então à vista de todos esse museu junto à recepção.
Não me apetecia andar de Macal. Deixei as malas no quarto e fui dar uma volta de barco. É um serviço que está à disposição de todos. São empresas especializadas que organizam estes passeios fluviais a um custo que depende do tipo de percurso. A minha viagem foi curta. Queria apenas reflectir um pouco no meio daquelas paisagens, imaginando como seria esta zona noutros tempos. Tantas rotas que passaram por aqui e daqui partiram. Foi durante muito tempo a única saída dos seus habitantes. O Guadiana nasce em Espanha e atravessa Portugal ao longo de 235 quilómetros. Desagua em Vila Real de Santo António, a ‘boca’ por onde entravam para chegar às entranhas do Alentejo. Espero que o futuro devolva a importância que este rio desempenhou. Desejo que volte a ser uma auto-estrada fluvial do interior do país.
Próxima paragem: Minas de São Domingos. Chego por um trilho de terra avermelhada, sobre a qual se ergue um conjunto de ruínas. São estruturas enormes de aço e paredes grossas que me fazem sentir pequeno num cenário verdadeiramente cinematográfico. A ausência de vegetação remete-me para um ambiente lunar. Parece que consigo ouvir a respiração dos trabalhadores a arrancar o minério que se transformava em pão para as suas famílias.
Eu transformo esta terra em arte. Pinto no papel as paredes que a fome do tempo come impiedosamente. Misturo água com a terra que piso e com essa lama faço estas pinturas. Gosto de utilizar os materiais que me rodeiam para fazer os meus registos de viagem. Não resisto a partilhar convosco o paio de porco preto e o pão alentejano que trago para saborear ao ritmo desta viagem. Devagar, como a velocidade da minha mota.
Estas minas foram um exemplo no progresso e desenvolvimento. Foi a primeira aldeia do país a ter luz eléctrica. Desde os romanos que se extraía daqui cobre e prata. Mas foi entre 1857 e 1966, pelas mãos da companhia inglesa Mason & Barry, que atingiram o seu apogeu. Extraíram cerca de 25 milhões de toneladas de minério. Uma actividade que envolveu a exploração a céu aberto de uma cota com cerca de 120 metros de profundidade, e de uma rede de galerias e poços que se desenvolveu até 420 m abaixo da superfície.
Foram tempos muito importantes para o desenvolvimento do Alentejo e do Algarve ao longo do Guadiana. Daqui partia um comboio para transportar os minérios até Pomarão, que se desenvolveu à custa destas minas. Como se situava na confluência da ribeira de Chança com o Guadiana, era o local estratégico para receber anualmente 500 barcos que levavam os minérios para terras de Sua Majestade. Hoje, restam apenas as memórias e um esqueleto em ferro que servia de guindaste para carregar os barcos que rumavam para sul.
Termino o dia em Alcoutim, já no Algarve. Chego ao final da tarde.
Enquanto desenho os barcos que por ali atracam, sou abordado de surpresa por um casal que me oferece uma boleia no seu veleiro até ao outro lado. Acharam a motorizada engraçada, contei-lhes o que ando a fazer e senti-me como aquelas meninas que passeiam o cão, a quem todos pedem para fazer uma festinha. A minha Macal conquista corações.
Agrada-me a ideia de ir até Sanlúncar de Guadiana. A partir de Espanha contemplo o sol a pôr-se no meu país. As localidades estão frente a frente, separadas apenas por esta linha de água. Sento-me com uma cerveja gelada e umas lascas jámon numa esplanada de bar junto ao rio. Ponho em brasa um charuto que trago na minha mochila para momentos especiais. É um sinal perfeito para um dia que não vou esquecer.