Ao sabor da Seara

Montados numa Macal, viajamos desde Beja, onde visitamos o museu dedicado ao genial escultor Jorge Vieira, até um oásis em Almodôvar. Pelo caminho, paramos para ouvir o som do vento nas searas ou saborear uma cabeça de borrego assada no forno. O projecto Pela Estrada Fora, que cumpre a sua etapa inaugural, não se faz…

A Macal pegou à primeira. Apesar de ter praticamente 40 anos de idade, ainda está para as curvas.
Ponho-me a caminho de Beja logo pela alvorada, para evitar o sol mais forte. A esta hora ainda me bate na cara um ar fresco que é o resquício das frias noites alentejanas.

Subo as ruas estreitas da capital de distrito, Beja. Os mais de dois mil anos de história desta cidade estão muito presente na arquitectura local. A robusta Torre de Menagem do seu castelo, em estilo Gótico, destaca-se de forma imponente. Com 40 metros de altura, é a maior torre de menagem de Portugal. Mas não só do passado vive esta terra.

Chego finalmente ao local previsto, o número 23 da rua do Touro. A porta de entrada é muito discreta. Foi uma casa de habitação antes de ser adaptada a espaço museológico. Falo-vos de um museu modesto em dimensão, mas rico no seu espólio – o Museu Jorge Vieira, escultor nascido em Lisboa em 1922 e considerado por muitos críticos o melhor artista da década de 50 do século XX. Das suas mãos nasceram figuras fantásticas, em ferro ou terracota, fruto de um percurso que agregou o primitivismo, o surrealismo e o abstraccionismo.

Em 1951, Jorge Vieira fez, tal como eu estou a fazer, uma viagem marcante sobre duas rodas. Na companhia de dois amigos, o pintor Rolando Sá Nogueira e o arquitecto Duarte Castel-Branco, Jorge Vieira seguiu até Itália de motorizada. Visitar este museu é também por isso uma fonte de inspiração para partir pela estrada fora.

Percorrendo o alcatrão que rasga as searas, sigo até Baleizão, a terra de Catarina Eufémia. No dia 19 de Maio de 1954, enquanto gritava contra a repressão e exploração do povo pelo regime de Salazar, esta ceifeira foi atingida mortalmente pelas balas do tenente Carrajola. Tinha apenas 26 anos e levava um filho de oito meses ao colo. A sua história trágica inspirou poetas como Sophia de Mello Breyner e Ary dos Santos, entre outros. Ficou celebrizado o poema de Vicente Campinas ‘Cantar Alentejano’ que Zeca Afonso musicou no álbum Cantigas de Maio: «Chamava-se Catarina / O Alentejo a viu nascer / Serranas viram-na em vida / Baleizão a viu morrer».

Nesta pequena aldeia, temos à disposição uma mão cheia de tabernas e sorrisos de bem receber, pelo que decido ficar mais um pouco, aproveitando para esperar que o sol baixe. Enquanto isso, desenho algumas pessoas que se sentam na soleira de suas casas, ou que vão até à taberna beber e passar o tempo, que aqui parece correr mais devagarinho por causa do ar quente.

Rumando para Sul, não resisto a levar comigo algumas das cegonhas que pontuam estas paisagens. Abro os meus Moleskines, saco das aguarelas e diluo-as na água já morna do calor. Brancas como as paredes caiadas, as cegonhas ofuscam os olhos de quem as quer pintar. Estão no cimo dos postes de electricidade e, por isso, mais perto do sol que inunda as centenas de ninhos que vemos ao longo das estradas. Noutros tempos, migravam todos os anos e voltavam para o mesmo ninho. Hoje, grande parte permanece aqui o ano inteiro devido às alterações climatéricas globais.

Pelo facto de não terem faringe emitem sons com o bater dos bicos. Este som, a que se dá o nome de glotorar, mistura-se com o da seara, que parece o sibilar de milhares de serpentes.
Sigo depois até Penedo Gordo, onde paro na taberna O Passarinho, para um copo de vinho tinto que se bebe fresco e de bom grado. Não posso exagerar na quantidade, por causa da Macal – ainda tenho estrada pela frente.

Preciso de um quarto para dormir. Não tenho nada previsto, por isso vou até Ervidel ver o que encontro por lá. Quando chego, o sol está a bater no horizonte, num daqueles finais de tarde para guardar no coração. Em seguida, dirijo-me para o Café Guerreiro para jantar. Como principescamente com base numa ementa que é diferente todos os dias, mas que mantém sempre os sabores alentejanos. Em conversa com a família que gere este estabelecimento, acabo por ser convidado a ficar durante uma noite.

Há muito que desejava conhecer uma casa tipicamente alentejana. Esta está impecavelmente caiada para reflectir o sol, com uma barra azul para dissuadir os mosquitos. No interior, as linhas do chão de mosaico jogam com as do tecto revestido a canas. As paredes em taipa são grossas e as janelas pequenas, para que a casa se mantenha fresca no Verão.

De manhã vou dar uma volta pela aldeia. Ficam-me na memória as igrejas e o edifício da Escola Agrícola, mas o que é verdadeiramente curioso são os poços de água no meio das ruas. Ainda hoje dão água aos seus habitantes e servem de ponto de encontro para trocar novidades. Depois desta caminhada matinal, agradeço à família Sezinando, que me acolheu, e parto.

Tenho quase 40 quilómetros para percorrer até Castro Verde. Falaram-me da taberna João das Cabeças, onde vou provar as afamadas cabeças de borrego servidas ali. 

Eis um exemplo que espelha o cruzamento da cultura alentejana com a árabe. Recordo que em Marrocos, por exemplo, o borrego é a figura gastronómica central na grande festa muçulmana do sacrifício a Aïd al-Kabîr. A diferença é que eles preparam a cabeça e o resto do corpo com a pele do animal, como fazemos com o leitão. Nesta taberna, as cabeças são serradas ao comprido e barradas com alho e sal. Depois, polvilhadas com pimenta, banha e regadas com vinagre. Chegam à mesa acabadas de sair do forno.

Desprevenido, tenho de pedir uma faca para me auxiliar. Não sabia que todo o alentejano leva consigo a sua navalha. Para apreciar a cabeça do borrego deve-se levar apetite e paciência. Todas as partes são para comer. Os olhos são gelatinosos, suculentos e muito saborosos. A mioleira derrete-se na boca. Se ela estiver inteira e coesa na sua forma, é porque o borrego é fresco e de qualidade. A melhor técnica consiste em usar os dedos e a navalha para tirar a carne metida nos recantos mais escondidos. Trata-se de um petisco que não exige grande formalidade.

Saciado, sigo viagem pela N2 até Almodôvar. As planícies começam a dar lugar à serra e por isso a paisagem vai mudando paulatinamente. A pouco mais de cinco minutos desta vila, também conhecida como a ‘Terra dos Sapateiros’ por causa do fabrico de calçado artesanal, encontra-se a Barragem Monte Clérigo, uma espécie de oásis em pleno deserto. É aqui que vou procurar uma sombra para fazer uma pausa. Quero dar algum descanso à motorizada – e a mim, que também mereço.